FERNANDO SANTO

jcf_3596INTERESSE PÚBLICO DE IMÓVEIS PRIVADOS

A gestão patrimonial dos edifícios públicos, designadamente a manutenção e conservação, as condições de utilização, a reabilitação e a requalificação, nunca foi uma prioridade para os governos da época democrática, sendo evidente o contraste com a forma como o Estado Novo promoveu, conservou e dignificou os edifícios públicos, com destaque para as funções de soberania do Estado.

A Direção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais (DGEMN) era o serviço central com atribuições de salvaguarda e valorização de património arquitetónico e de instalação de serviços públicos. Foi constituída em 1929 e ao longo de 78 anos assumiu essa competência e tornou-se numa verdadeira escola orientada para os edifícios e monumentos nacionais, até à sua extinção em 2007, com a divisão por outros organismos públicos. Perdeu-se o saber, as competências e a escola que passou de geração em geração. Em 2006 extinguiu-se o Conselho Superior de Obras Públicas e em 2011 foi extinto o Ministério das Obras Públicas, transformado numa Secretaria de Estado. A gestão corrente do património público ficou integrada na Secretaria de Estado do Tesouro, com um estatuto de controlo financeiro, e não de uma verdadeira gestão patrimonial, ficando o património cultural integrado na Secretaria de Estado da Cultura, mas sem orçamento adequado.

Desvalorização do património públicoimg_2599

Apesar de as decisões serem de muitos e diferentes governos, o Estado foi assumindo a desvalorização do património público, abandonando imóveis, não reabilitando os que necessitavam, mas em contrapartida arrendando muitos edifícios privados para instalar serviços públicos, dando uma imagem de má gestão e incompetência. O valor das rendas anuais ultrapassa os 100 milhões de euros. Mas, em sentido contrário, foram implementadas políticas para classificar como de interesse público imóveis privados, que, assim, sem qualquer despesa pública passaram a ser de todos nós. É o que costumo designar por “política do cuco”, pois os cucos também utilizam os ninhos de outras aves para colocarem os seus ovos, aproveitando-se do trabalho e do investimento de outros. Definem-se zonas de proteção, classificam-se edifícios privados, há movimentos para tornar de interesse público lojas, cafés e restaurantes particulares, com fortes restrições, mas sem que isso envolva qualquer contrapartida como pagamento. É uma espécie de “nacionalização”, mas sem indemnização. Alguns promotores ainda acreditam que vale a pena escolherem projetistas com marca pessoal reconhecida e até admitem que é uma vantagem receberem prémios tipo Valmor, sem perceberem que essas escolhas e distinções irão condicionar e limitar o futuro do imóvel, uma vez que passou a ser de todos, mas sem pagamento. Estou de acordo com a proteção dos imóveis privados que mereçam esse reconhecimento, mas não concordo que o Estado, tão desleixado com a proteção dos seus imóveis, transmita os imóveis privados para a esfera do interesse público, sem qualquer acordo quanto ao pagamento do ónus. No caso das parcerias público-privadas, das concessões, ou mesmo na gestão privada de sistemas públicos, há um acordo e uma retribuição aos privados pelos bens ou serviços produzidos, e nas expropriações são claras as regras para determinar o valor a pagar. Mas no mundo do património imobiliário nada do que é natural nas outras áreas se aplica, congelaram-se as rendas, obrigaram-se os senhorios a assumir funções sociais do Estado e a pagar impostos mesmo sem rendimentos, e agora passam a ser proprietários de uma espécie de monumentos nacionais, sem direito a cobrar bilhete de entrada.

Classificação e valorização

Recentemente, a Assembleia da República aprovou uma Resolução (n.º 100/2016), relativa à classificação e valorização das lojas históricas. É do mais elementar bom senso que este tipo de lojas deverá ser protegido, mas os critérios devem ser discutidos com as partes envolvidas, bem como o perfil de quem os avalia, tal como sucede em qualquer expropriação. Caso contrário iremos assistir, mais uma vez, à “política do cuco”, as lojas passam a ser de todos, apesar de serem privadas, e as relações entre senhorios e inquilinos são ignoradas. Há formas justas de tratar este tipo de soluções, começando pela negociação com as partes envolvidas, com regras definidas, registos e contrapartidas financeiras. A aplicação do IMI negativo poderia ser outra medida, ou seja, o proprietário em vez de pagar IMI receberia anualmente um montante acordado para manter e conservar um património que é reconhecido como de interesse público. Não sendo este o caminho, restará aos promotores e proprietários promoverem a construção de imóveis de baixa qualidade arquitetónica, que nunca mereçam qualquer classificação, pois umas décadas mais tarde poderão demolir esses edifícios, alterar as lojas para atividades de maior rendimento e ainda poderão receber o agradecimento pelo favor de demolirem o mamarracho, “a bem da Nação”.

sam_2068Modelo diferente de organização pública

Já era tempo de o Estado assumir a sua responsabilidade pela gestão do seu património, mas para isso era preciso outra política, um diferente modelo de organização pública e verbas adequadas. Como não é esta a preocupação, é mais fácil ao Estado abandonar ou vender o seu património e arrendar edifícios a privados, prontos a utilizar, mesmo que ao fim de 20 anos tenha pago em rendas o valor do imóvel. É neste contexto que se percebe a “nacionalização” de edifícios privados de valor arquitetónico, sujeitos a critérios duvidosos aplicados por técnicos da administração pública, ou seja, por uma das partes, e que impõem a todos, sem escrutínio, incluindo a outros técnicos de igual competência, os seus conceitos, ideologias e vontade. Evoluímos muito nos últimos 40 anos, mas nesta matéria o tempo da ditadura mantém-se, como vontade de alguns iluminados que impõem a todos uma verdadeira ditadura de pareceres e de entendimentos abusivos do direito dos cidadãos.