O LEGADO DAS GERAÇÕES PASSADAS, a preparação das gerações futuras. A importância da identidade de cada vinha, a singularidade do lugar e a paixão pelo Douro.
Quem é Tiago Alves de Sousa? Um duriense apaixonado pela vinha e pelo vinho, com o privilégio, mas também aenorme responsabilidade, de seguir com um legado familiar muito especial numa das regiões mais incríveis e desafiantes do mundo.
Para o enólogo Tiago Alves de Sousa, apesar da tradição da família, não lhe foi de todo imposto seguirprofissionalmente o mundo dos vinhos. Na verdade, conta-nos que na sua geração são quatro e todos tiveram a liberdade para escolher o seu caminho, mas desde cedo sentiu uma forte ligação à terra, à vinha, à adega,assegurando que a sua escolha e entrada no mundos dos vinhos foi algo totalmente natural.
Alves de Sousa
Falando da Alves de Sousa, é impossível não falar no nome Domingos Alves de Sousa, seu pai. Questionámos o enólogo sobre a importância e inspiração que aquele lhe transmite. Cnfessa-nos que, sem qualquer dúvida, o seu pai é a sua grande referência, o seu grande mentor e a maior inspiração. A sua dedicação e capacidade de trabalho, mesmo hoje, aos 75 anos, é admirável. A importância do seu papel na enorme revolução que o Douro viveu a partir dos anos 1990, naquilo que o Douro é hoje, em tudo o que construiu, enche-o de orgulho, mas também de um enorme sentido de responsabilidade.
Do mesmo modo, quando assumiu a enologia da Alves de Sousa pela mão do seu pai, Tiago Alves de Sousa reconhece o privilégio de trabalhar ao lado dele há já mais de 20 anos e estar sempre a aprender com ele nas diferentes vertentes do trabalho. E pelo facto de ter percebido muito cedo a perceção da dimensão do trabalho do seu pai, sentiu desde logo a vontade de se preparar o melhor possível, aprender, ganhar experiência, munir-se das ferramentas necessárias.
A sua decisão de assumir a enologia da Alves de Sousa foi algo pensado e preparado com o tempo devido. Começou a acompanhar os trabalhos bastante novo, a aprender muito com o saber empírico e experiência das pessoas da vinha e dos antigos adegueiros. A sua entrada na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD) foi um passo importantíssimo. “O compreender da ciência por trás da vinha e do vinho, os fundamentos de algumas práticas tradicionais, o questionar de outras, as novas ferramentas… foi fantástico! E aumentou a paixão por este mundo de forma exponencial, levando a querer saber mais e mais. Nesse sentido, ao terminar o curso, além de entrar oficialmente na equipa, inicio também um doutoramente em Viticultura e Enologia”, diz-nos o enólogo.
No caso concreto da Enologia, apesar de o seu pai ter a experiência de uma vida, a sua área de formação era diferente (Engenharia Civil), pelo que desde o início sempre fez por se rodear de técnicos capazes, como foi o caso de ter contado com Anselmo Mendes como Enólogo Consultor. Tiago Alves e Sousa trabalhou ao lado deste de 2003 a 2013. Foram 10 anos de trabalho em conjunto com Anselmo Mendes, com quem diz ter aprendido muito, promovendo uma passagem de testemunho gradual e natural até assumir toda a responsabilidade dos vinhos produzidos pela Alves de Sousa.
Legado
Com a responsabilidade e legado que é a Alves de Sousa, questionámos o enólogo sobre os vinhos que já produziu,qual o vinho que considera que o define, ao que nos responde prontamente ser o Abandonado, pois foi um dos primeiros vinhos que surgiu oficialmente já com Tiago Alves de Sousa na equipa de enologia, recordando como tal era uma tela em branco. Também por representar tudo aquilo que o enólogo mais preza e respeita – a identidade que apenas a vinha confere, a singularidade do local, o legado das gerações passadas. Questionámo-lo também acerca do vinho mais desafiante, que foi a primeira edição do Memórias, lançado em 2013. Conta que a ideia era fazer um vinho capaz de contar a história dos 20 anos volvidos de Douros da família Alves de Sousa. E como tal teria de ter as melhores vinhas (Gaivosa, Abandonado, Lordelo…), o que o levou à grande questão “como introduzir a dimensão do tempo passado”. Surgiu então a ideia de reunir as melhores colheitas da década anterior, passando a ser uma edição limitada apenas lançada de 10 em 10 anos, como que representasse o encerrar de um ciclo, para dar início a um novo. “Foi inspirado na tradição dos Portos Tawny, na arte do lote de vários anos ao longo do tempo em cave… o que, num vinho do Douro, representou um desafio técnico enorme! Mas foi dos processos mais bonitos, e recordo claramente a emoção na sua conclusão”, remata o enólogo.
Douro
Portugal tem uma particularidade incrível de ser um país pequeno e conseguir oferecer tantas regiões vinícolas de características tão diferentes. Questionado sobre o facto de trabalhar no Douro, onde se encontra o projeto Alves de Sousa e suas quintas, e sobre se alguma vez ponderou em explorar outra região, responde: “Portugal é um país incrível e atualmente existem grandes vinhos de norte a sul, sem esquecer as ilhas. Contudo, do ponto de vista técnico (e da paixão), o Douro é uma região tão completa que me realiza plenamente, não sentindo propriamente uma necessidade ou urgência em trabalhar noutras regiões. Numa mesma região termos quase 120 castas autóctones à disposição e podermos fazer todo o tipo de brancos, rosés, tintos, espumantes (em breve!) e, claro, sem nunca esquecer o vinho do Porto… É um privilégio e o verdadeiro Disneyworld do enólogo! E por outro lado ainda continua a haver muito a fazer, castas e locais ainda por explorar, preparar as próximas gerações. Por isso, e também sem sair da região, regressei ao mundo académico, como professor de Enologia na UTAD. Acredito que se todos nós dermos um pouco que seja do nosso tempo a ajudar na formação das novas gerações de enólogos, eles terão tudo para ir ainda mais longe e afirmarem definitivamente o nosso país como um dos melhores produtores de vinho do mundo.”
Recuando curiosamente ao tempo em que o seu pai, Domingos Alves de Sousa, começou a lançar o DOC Douro, não havia mercado para esse tipo de vinho, parece-nos quase impossível acreditar, pois hoje em dia pensar em vinhos é pensar em Douro. Perguntámos ao enólogo quão desafiante é esta luta constante de, sendo hoje o vinho tão acessível e com tanta oferta, conseguir manter o consumidor: “Ambas as situações são desafiantes. No início, o Douro era Porto,logo obrigou a abrir horizontes, correr mundo e a investir muito na divulgação deste novo Douro. O trabalho da geração do meu pai quebrou muitas barreiras e criou os alicerces para os que se seguiram. O reconhecimento dos DOC Douro é assinalável, sobretudo tendo em consideração que passaram pouco mais de 30 anos. Hoje, felizmente, são muito os produtores na região a trabalhar muito bem e essa concorrência é bem-vinda. Só valoriza a região e puxa por nós, faz-nos manter sempre atualizados, não nos acomodarmos. Os famosos cinco minutos de fama passam num piscar de olhos e só com muito trabalho e criatividade nos mantemos relevantes. E o bonito deste mundo da vinha e do vinho é efetivamente estarmos constantemente a ser desafiados, sobretudo pela própria natureza.”
Desafios
Apesar do desafio em manter o “fiel” consumidor, o maior de todos ainda é a desafiante Mãe Natureza. Pedimos aoenólogo que refletisse sonre o facto de Portugal estar a ficar um país praticamente sem estações, onde as alterações climáticas estão a impor uma nova realidade climatérica… Se esta realidade o “assusta” ou se considera que será uma adaptação desafiante: “É efetivamente assustador e um desafio à escala global.” Temos que nos esforçar cada vez mais para que a vitivinicultura não seja parte do problema mas parte da solução, com práticas que vão muito além da adaptação, mas que permitam na realidade reverter este cenário. Promover a biodiversidade no ecossistema vinha, um uso consciente e criterioso da água, capturar carbono nos solos, a utilização de energiasrenováveis, tratamento e aproveitamento dos efluentes e dos sub-produtos… e tanto mais que podemos e temos de fazer. Há portanto esperança, se formos pró-activos.
Por outro lado a videira é uma planta extraordinária! E a par dos diversos mecanismos fisiológicos e morfológicos que lhe permitem ainda assim adaptar-se a condições particularmente extremas, nós próprios também devemos ajudar com uma viticultura que volte a recentrar-se nas condições edafoclimáticas e não apenas em mecanização e redução de custos. Portugal será ainda assim um dos países melhor preparados para estes desafios, particularmente pela diversidade extraordinária de castas autóctones, nas quais poderemos encontrar respostas para muitos dos desafios atuais e futuros.”
Futuro
Ajustando o trabalho e produção de todos os dias aos desafios atuais e prevenindo os futuros, tendo em conta a realidade do mundo da vitivinicultura e enologia, pedimos ao enólogo que partilhasse questões em que considera importante intervir: “As alterações climáticas, a nossa pegada ambiental, as questões demográficas e socioeconómicas das regiões vitícolas… são muitos os desafios, técnicos mas não só. Na vinha temos que caminhar no sentido da precisão. E a sustentabilidade ambiental, mais do que um argumento comercial, tem que ser um verdadeiro desígnio e prioridade. Na adega, o papel do enólogo passa pela leitura da natureza, da qualidade das uvas no contexto do ano climático, e procurar as ferramentas mais adequadas para as potenciar. Sem protocolos pré-estabelecidos, sem tabus, de mente aberta, sem impor, fazendo a sua ação depender sempre das uvas e dos objetivos produtivos.
Nos mercados ter alguma prudência e pragmatismo com as ‘modas’ – ontem queria-se muito de tudo (álcool, madeira, corpo…), hoje quer-se o oposto, amanhã quem sabe. As modas são naturalmente efémeras, e na verdade os grandes vinhos são intemporais – já o eram há 50 anos e continuarão a ser daqui a 50 anos. E mantermo-nos fieis aos nossos elementos diferenciadores, nomeadamente as nossas extraordinárias castas autóctones.”
Para terminar como habitual, se existisse uma cápsula do tempo, que palavras Tiago Alves de Sousa gostaria de deixarpara serem recordadas? “Que do privilégio de dar seguimento ao legado das gerações passadas vem a responsabilidade de o honrar, aprofundar e o preparar para as gerações futuras.”