TEMPOS EXTRAORDINÁRIOS REQUEREM MEDIDAS EXTRAORDINÁRIAS? Vivemos tempos realmente únicos para as gerações actuais, que desde o pós-guerra, nomeadamente desde o desencadear da Guerra Fria, não vivenciavam acontecimentos tão extraordinários, cujo impacto se estende à escala global em matéria de dias, sem que se consiga antever de que forma o seu fim se irá materializar. Refiro-me à Guerra Fria porque também ela constituiu um choque para as sociedades livres que ansiavam por momentos de paz e harmonia após seis anos de guerra intensa e afinal, o que sucedeu, de uma forma ou outra, acabou por ter um impacto à escala global, limitando liberdades e garantias dos cidadãos sujeitos a regimes totalitários, e da mesma forma impedindo os restantes de com eles poderem contactar e confraternizar. Mesmo as democracias já consolidadas tiveram de implementar mecanismos básicos de controlo que garantissem que esses mesmos regimes totalitários não poderiam colocar em causa a integridade do Estado de Direito, podendo por vezes esses mecanismos confundir-se com um menor respeito pelos direitos individuais. Dito isto, e parecendo que enveredei por um caminho tortuoso, parto deste raciocínio para suportar a ideia – eventualmente a carecer de maior maturação – de que também hoje, a coberto do combate à pandemia e de todas as medidas extraordinárias entretanto implementadas, a começar pelos repetidos Estados de Emergência, faz sentido repensar uma série de conceitos, tidos como inquestionáveis à luz da nossa história recente, história essa que ainda não tinha conhecido nada parecido com o que estamos a viver hoje.
Situação pré-pandémica – Logo que se começou a desenhar no horizonte a extensão e gravidade da situação pré-pandémica associada à Covid, vivida então apenas na região de Wuhan, China, muitos países iniciaram a corrida para garantir o fornecimentos dos dispositivos médicos necessários ao suporte de vida, dos quais os ventiladores foram o principal recurso procurado, mas não só – fatos, máscaras, luvas cirúrgicas e medicamentos foram colocados na primeira linha de necessidades que os Estados encararam como críticas, fazendo tudo o que estava ao seu alcance para as garantirem. Durante meses tudo valeu, mesmo entre aliados e membros do mesmo Espaço Económico Europeu. Desde negociações paralelas por forma a conseguir desviar os recursos de outros países que já os haviam contratado e nalguns casos pago, “sequestro” desses recursos quando transitavam por portos ou aeroportos em escala para o destino final, até bloqueio das exportações para países terceiros, por forma a garantir que a prioridade na utilização desses recursos recaía sobre os nacionais do país em causa.
Globalização do sector farmacêutico – O Estatuto do Medicamento no seu Art.º 97.º prevê que “o exercício da atividade de distribuição por grosso de medicamentos apenas é autorizado no caso de o interessado dispor, em território nacional, de instalações e equipamentos adequados e com capacidade para assegurar o armazenamento de acordo com as condições de conservação e distribuição dos medicamentos”. Este requisito significa que o armazenamento dos medicamentos terá de ser assegurado obrigatoriamente em território nacional, independentemente da nacionalidade do operador ou do detentor da Autorização de Introdução no Mercado. Esta condição procura a meu ver proporcionar às autoridades portuguesas um escrutínio mais eficaz sobre o cumprimento das boas práticas de distribuição, mas também e de certo modo procura garantir a manutenção em território nacional de um recurso estratégico: o medicamento. É com este desiderato que uma nova reflexão se impõe aos decisores políticos relativamente à re-industrialização da Europa, nomeadamente no que diz respeito ao sector farmacêutico. A globalização deste sector é uma realidade que tem décadas, mas assumiu maior visibilidade nos últimos anos fruto de uma cada vez maior concentração e escassez dos produtores de API (substâncias activas), mas também de formulações finais prontas para consumo, não raramente em origens distantes do continente europeu.
Que medidas? – À luz da realidade em contexto de pandemia acima descrito, impõe-se pensar que medidas extraordinárias tomar e que estejam em consonância com a urgência de garantir o acesso ao medicamento, sobrepondo o interesse público aos critérios da livre iniciativa, da livre concorrência e do não proteccionismo? Faz sentido incentivar a partilha de propriedade intelectual, ainda que de forma temporária, garantindo assim que vários players no mercado coloquem a sua capacidade de produção já instalada ao serviço da comunidade, produzindo soluções terapêuticas de terceiros num curto espaço de tempo e desta forma o lucro de quem desenvolveu não seja colocado em causa, mas também não seja o único critério (ex. vacinas Covid-19)? Faz sentido incentivar e premiar os players que tenham base industrial instalada no espaço europeu e porque não em território nacional? É certo que, em tese, todas estas possíveis medidas poderão contrariar a génese do espírito sobre o qual se moldou o Espaço Único Europeu e aquilo que a própria OCDE preconiza, mas tal como comecei, referindo as excepções a que o Estado de Direito tem de recorrer para se defender a si próprio e aos seus: tempos extraordinários não requerem medidas extraordinárias?