FERNANDO LEAL DA COSTA

Social-Patocracia.

Todas as grandes tragédias começam por ser um facto irrisório e há muita inevitabilidade que poderia ter sido prevenida. 

Normalmente não seria minha intenção escrever sobre futebol para lá de relevar os aspetos associados à possível promoção do exercício físico junto dos mais jovens e da população em geral. Infelizmente até isso já se perdeu quando a indústria do circo desportivo transformou o chuto na bola num espetáculo que move milhões, sobretudo por via das receitas provenientes das transmissões televisivas e dos preços da publicidade que nos é transmitida através desse fenómeno mediático.Lamentavelmente, fala-se dos desportos, dos espetáculos “desportivos”, muito mais por causa da corrupção, da fuga ao fisco, das barrigas de aluguer, das “bimbas” que se promovem na companhia dos artistas e das “transferências milionárias”que se assemelham a um reviver dos mercados esclavagistas de séculos passados.Fulano “é do” clube tal, como se houvesse uma propriedade de pessoas a exercer através de um contrato, muitas vezes milionário, que não é de aquisição de pessoas, mas sim de serviços prestados por pessoas. E há a ocupação do espaço mediático, com especial destaque para as televisões que preenchem horas do seu tempo de antena com conversas entre labregos, apresentados como cidadãos ilustres, falando de banalidades sem fim, “calinando”a gramática, com gravatas saídas de armários inconcebíveis, penteados e cortes de cabelo a rigor, enchendo-nos de espanto e afrontando o mais elementar bom-senso.Uma escola de má educação e estultícia que serve, acima de tudo, para acicatar ódios e promover a mais profunda mediocridade pessoal e social. E os políticos benzem tudo isto, recebem comitivas no Parlamento, passeiam-se em estádios, exibem-se em bancadas, almoçam com os “planteis”, condecoram os “heróis”. Nem o comentário político, desde os tempos do nosso agora Presidente, escapou à “rubrica de desporto”E há os presidentes, os outros, geralmente da mais fina extração educacional e social, gente finíssima, impoluta e exemplar, burgessos que escalaram a escada social através de negócios pouco claros e se guindaram a posições que só têm porque os querem deixar ter. Quem os quer? Todos. Principalmente os que fazem dinheiro com o mercado de assets,que é o dos jogadores e treinadores, os menos culpados de tudo e nem sempre os maiores beneficiários.E há os denominados adeptos, grupos de gangsters, presidiários e traficantes, a quem se chama de claques, a escória humana transformada em caceteiros. Gente sem vida própria, sem projeto que se estenda para lá da pancadaria e do assalto a bombas de gasolina, em quem a alma já só é da única tribo onde ainda são aceites, a dos hooligans, os nazis da nova Europa.E assim, em sociedades violentas, cuja violência está latente, embora se insista em dizer que estão “descrispadas”, onde a falta de civilidade é o grande avanço civilizacional e a rudeza das palavras e dos atos dominam o quotidiano, confrontados com a ascensão de ladrões e psicopatas ao palco dos nossos dias, já não nos resta esperar pela institucionalização da nova doutrina, a da social-patocracia (social porque é de todos, mesmo dos que a não querem, e pato, de pathos, porque é triste e trágica). No fundo, todas as grandes tragédias começam por ser um facto irrisório e há muita inevitabilidade que poderia ter sido prevenida.

Médico do IPO e professor da Escola Nacional de Saúde pública