MULTIDISCIPLINARIDADE E O EXERCÍCIO DA ADVOCACIA
Cremos que a polémica está longe de estar encerrada, apesar de a Proposta de Lei de revisão dos Estatutos da Ordem dos Advogados recentemente submetida pelo Governo proibir, no seu artigo 213º, n.º 7, as sociedades de advogados de exercer, direta ou indiretamente, a sua atividade em associação ou integração com outras profissões e entidades cujo objeto social exclusivo não seja o exercício da advocacia. A Ordem e a ministra da Justiça parecem ter inviabilizado (por ora) a criação das sociedades multidisciplinares, mas este é apenas mais um capítulo numa longa batalha que se iniciou, recordemos, nos anos 1990, na Holanda, entre a então Arthur Andersen e a PWC e a Ordem dos Advogados holandesa, que culminou com o Acórdão do Tribunal de Justiça datado de 19 de junho de 2002 no processo C-309/99. No referido processo, o Tribunal de Justiça, embora admitindo os efeitos restritivos em termos de concorrência, considerou em suma que as obrigações deontológicas e as especificidades do exercício da advocacia legitimavam a adoção por parte das ordens profissionais de restrições no acesso à profissão. Estava em causa – como hoje, passados cerca de 20 anos – a articulação entre os deveres de sigilo profissional e independência dos advogados, face a profissionais como auditores e revisores oficiais de contas, os quais têm como função (entre outras) dar conta dos resultados financeiros de entidades por si certificadas. Aliás, sejamos claros, a multidisciplinaridade só se coloca verdadeiramente como forma de associação de advogados e auditores, ou, dito de outra forma, no acesso por parte das multinacionais de auditoria ao mercado jurídico, o qual se estima poder valer, na União Europeia, cerca de 148,2 biliões de euros. Percebe-se o interesse e entende-se a resistência. Nesta contenda pelo mercado dos serviços jurídicos, discute-se pouco o interesse do cliente. Ficaria este melhor servido com sociedades multidisciplinares? A discussão é séria, porquanto a profissão de advogado é de interesse público e destina-se a assegurar a tutela dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. Não há Estado de Direito sem advogados, como não há economia de mercado sem auditores e revisores. Complementamo-nos, mas podemos articular-nos? Um dos argumentos avançados pelos defensores da multidisciplinaridade consiste na possibilidade de aumentar a concorrência e por essa via reduzir os custos dos serviços jurídicos. Entende-se o argumento, mas não podemos ignorar o elevado grau de concentração do mercado de auditoria, o que cria problemas complexos de articulação com a proibição de conflitos de interesses a que se mostra sujeito o exercício da advocacia. Por outro lado, uma batalha sem quartel pela redução do preço dos serviços jurídicos constitui uma ameaça séria à independência dos advogados. Não há advocacia sem liberdade, incluindo económica. Esta discussão leva-nos, contudo, a outros caminhos menos explorados, como seja o do financiamento das sociedades de advogados e a impossibilidade destas entidades se constituírem como sociedades comerciais, fugindo do regime de transparência fiscal. Ficou nesta discussão por debater, de forma séria, a denominada multidisciplinaridade imprópria, ou a possibilidade de as sociedades de advogados terem como sócios entidades que não tenham por objeto a prestação de serviços jurídicos. O debate e a polémica aguardam pelos próximos capítulos.