A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DO GÁS – No seu romance de 1984, Milan Kundera explora as contradições e dúvidas da natureza humana, dividida entre uma leveza existencial e o peso da realidade inerente à nossa própria dimensão terrena. O mundo ocidental tem vivido nestas dúvidas e contradições, o que poderá em parte explicar alguns dos contornos do conflito na Ucrânia.
Com efeito, de um lado temos a leveza (e eternidade) dos direitos humanos, da luta de um povo pela sua liberdade, transformados em heróis por uma Europa aburguesada e carente de referências e causas. O Estado de Direito, as liberdades civis, a autodeterminação, a decência, a ética na política e nas decisões económicas têm soado a escolhas filosóficas perante o peso do realismo estratégico, do poder e de um liberalismo económico que a todos nos cegou nas últimas décadas.
EXEMPLO UCRANIANO
O que o povo ucraniano nos tem transmitido diariamente é um exemplo de humanidade, de decência, de coragem perante o cinismo ocidental e a brutalidade de um regime autocrático que está no poder na Rússia há mais de 20 anos. Regime, esse, que o Ocidente não se coibiu de transacionar e financiar – como o faz hoje em dia – através de uma dependência energética dificilmente compreensível e aceitável. O mesmo Ocidente que negoceia, lucra e tolera muitos outros Estados autocráticos e ditatoriais, desde o Médio Oriente, passando pela Venezuela ou o Irão. Os direitos humanos são uma escolha filosófica que cede perante interesses económicos pouco transparentes e longe do escrutínio das sociedades democráticas. E são muitos os setores que fecham os olhos a esta realidade. Lendo as notícias das últimas semanas, parece que a classe política acordou em 2022 para a existência de oligarcas, contudo, os mesmos passeiam-se na Europa Ocidental há décadas perante a complacência de todos. Essa mesma complacência e realismo que levou governos ocidentais a alienar setores e empresas estratégicos a investidores e Estados com valores contrários à nossa matriz identitária e interesse coletivo.
ERRO TRÁGICO
A tudo isto fechámos os olhos, com a complacência própria de um inebriamento coletivo que agora nos envergonha e nos remexe a consciência coletiva perante a tragédia humana que está a ocorrer nas nossas fronteiras.
Diz a sabedoria popular, diz-me com quem andas e dir-te-ei quem tu és. Pois há muito que a Europa anda de mãos dadas com gente pouco recomendável. E ao fazê-lo – ao não impor uma dimensão ética e de direitos humanos nas suas políticas públicas e atividades comerciais – criou as condições para a ascensão e fortalecimento de vários Estados que são intrinsecamente contrários e inimigos dos nossos valores e cultura. Este erro trágico é o combustível que alimenta cada bomba despejada sobre o teto de uma Europa fragmentada e fragilizada. Falar em sanções económicas neste contexto – quando se continua a injetar biliões de euros em economias e blocos antagónicos – constitui a insustentável confissão do desgoverno coletivo e falta de visão estratégica que nos trouxe até aqui.
DESPORTO COMPROMETIDO
Por falar em sanções, olhemos para o que se passa com o desporto. Clubes tomados por oligarcas e fundos soberanos de países onde as liberdades são uma miragem – o que se passa no Chelsea é um bom exemplo do risco de entregar instituições centenárias a investidores cuja idoneidade está há muito por demonstrar –, a FIFA patrocinada pelo gás russo, ou um Mundial entregue ao Qatar. O equilíbrio e sustentabilidade do futebol europeu comprometido a troco de interesses económicos e agentes sem escrúpulos.
Falar em sustentabilidade – seja ela ambiental, energética ou social – é uma miragem quando vendemos e comprometemos a nossa identidade, os nossos interesses estratégicos, as nossas instituições por um punhado de lentilhas. Perante o pesadelo do som das sirenes em Kiev e por toda a na Ucrânia, descobrimos que a Europa e alguns dos seus setores económicos vitais se encontram comprometidos, pois não há liberdade e autonomia perante tanta dependência económica. O aumento do preço dos combustíveis é de facto um pequeno preço a pagar pela nossa insustentável irresponsabilidade, enquanto assistimos no calor dos nossos lares ao desespero e sofrimento de um povo. Slava Ukraini!