REGULARIZAÇÃO TRIBUTÁRIA – Temos um Estado (Fiscal) de Direito? Nos últimos dias têm surgido notícias sobre as primeiras diligências encetadas pela Administração Tributária (AT) em relação aos elementos patrimoniais declarados ao abrigo dos famosos RERT. O último dos RERT (Regime Especial de Regularização Tributária) foi aprovado pela Lei do OE/2012 e operacionalizado através da Portaria n.º 17-A/2012, de 19 de janeiro, nos termos da qual se aprovava a declaração de regularização tributária, seus elementos e se consignava expressamente tratar-se de dados abrangidos por segredo fiscal e que deviam ficar à guarda do Banco de Portugal. Como ponto prévio, importa referir que sempre fui frontalmente contra este tipo de solução legislativa, desde logo por representar uma violação ostensiva da igualdade tributária e, potencialmente, fomentar a legalização de rendimentos obtidos de forma ilícita (ainda que o RERT não exclua a responsabilidade criminal por factos ilícitos de natureza extrafiscal). A verdade é que, para além da exclusão de responsabilidade tributária, criminal e contraordenacional relativamente aos factos, elementos e rendimentos objeto do regime de regularização, ficou, expressamente, consignado que “nos limites dos respetivos regimes, a declaração de regularização tributária não pode ser, por qualquer modo, utilizada como indício ou elemento relevante para efeitos de qualquer procedimento tributário, criminal ou contraordenacional, devendo os bancos intervenientes manter sigilo sobre a informação prestada”. Em termos práticos, o Estado incentivou um conjunto de contribuintes a regularizar a sua situação fiscal – revelando um conjunto de factos, elementos patrimoniais e rendimentos não declarados em Portugal e assim subtraídos potencialmente a tributação – contra o pagamento de uma taxa de 7,5%, a exclusão de qualquer responsabilidade e o compromisso de total sigilo bancário e segredo fiscal. Acordo, esse, ancorado numa Lei do Orçamento do Estado, uma lei de valor reforçado.
O acesso à informação por parte da AT – Ora, no último Orçamento do Estado para 2019, a maioria parlamentar aprovou um regime especial de acesso à informação por parte da AT em relação aos RERT, nos termos do qual: (i) os bancos foram obrigados a transmitir à AT as declarações de regularização e os demais elementos que instruíam o pedido; (ii) dever de colaboração por parte dos sujeitos passivos sobre os elementos declarados; (iii) foi atribuído o poder à AT de acesso a esses elementos e documentos bancários sem dependência de consentimento do sujeito passivo. São muitas as questões técnicas que se colocam sobre estas normas e sua articulação com diversos preceitos constitucionais e o ordenamento tributário em vigor. Enumerando apenas algumas: (1) a perda ou não da presunção de veracidade dos elementos declarados em caso de recusa de colaboração; (2) alargamento ou não dos prazos de caducidade para elementos patrimoniais e rendimentos obtidos em zona de baixa tributação; (3) possibilidade da AT iniciar investigações e pedidos de assistência mútua junto das instituições financeiras onde estavam localizados tais elementos patrimoniais – reabrindo esses anos e obtendo informação sobre esses e outros ativos eventualmente não declarados; (4) articulação do RERT com regimes especiais como o regime de manifestações de fortuna; (5) validade de tais elementos de prova para fins criminais, e podíamos continuar.
Inconstitucionalidade ostensiva – Contudo, o primeiro comentário que nos assalta de forma evidente é que a atuação da AT ao abrigo dos poderes que lhe foram conferidos por via parlamentar não é digna de um Estado de Direito. Se é socialmente discutível conceder regimes de favor fiscal em nome do equilíbrio orçamental, é absolutamente inaceitável que sejam induzidos determinados comportamentos – no limite auto-incriminadores – assegurando o sigilo bancário e fiscal, para vários anos mais tarde se permitir à AT o acesso a tal informação. Trata-se de uma violação ostensiva do princípio constitucional da tutela da segurança e da confiança legítima, assim como o princípio constitucional do direito à não incriminação. Saliente-se que não vislumbramos, no quadro legal e orçamental em vigor em 2019, qualquer situação excecional que justifique a derrogação de tais princípios constitucionais e no fundo a derrogação do regime consignado no RERT. As razões de prevenção da fraude fiscal e igualdade tributárias são idênticas na data de aprovação do RERT em 2012, como em 2019. E sendo ostensiva a inconstitucionalidade do regime aprovado com o OE/2019, afigura-se-nos legítima a recusa de colaboração face ao disposto na alínea d) do n.º 5 do artigo 60.º da Lei Geral Tributária (causa legítima de recusa de colaboração). De igual modo, face à eminente violação de dados de natureza sigilosa e que estiveram na origem da submissão da declaração de regularização, bem como a adoção de outras medidas suscetíveis de causarem lesão irreparável, é de admitir o recurso a providência cautelar inominada interposta pelo próprio contribuinte, acompanhada dos meios processuais de reação a quaisquer atos tributários decorrentes do acesso ilegal a tais elementos. Em suma, o que nasce torto raramente se endireita, e esta é uma das lições a retirar destes regimes.