ROGÉRIO ALVES

FUNÇÕES DO ESTADO – Justiça um novo adereço temporário, mas sempre a mesma função. Com os adereços do costume – a imparcialidade na venda, a ponderação na balança e a força na espada –, acompanhados agora das máscaras nas audiências, a Justiça segue indispensável na sua ação fiscalizadora e sancionatória. Um pouco antes do eclodir da pandemia li, com curiosidade, o Permanent Record de Edward Snowden (MacMillan 2019). O livro é um pouco aborrecido, na justa medida em que Snowden é um escritor acidental. Porém, como sempre faço, levei a empreitada até ao fim. Não dei o tempo por perdido. O roteiro singular percorrido pelo autor, aliado à metamorfose que a sua vida sofreu, são ingredientes que justificam a leitura. As mais de trezentas páginas que o texto percorre, comportam, ao chegar à foz, uma notícia fundamental: afinal alguém consegue mesmo saber quase tudo, sobre quase toda a gente, em quase todo o lado. O Big Brother de Orwell desconfinou-se da ficção, se me permitem usar a retórica da época, e aparece recauchutado e vigoroso em modo realidade. Ao tradicional watching you, junta-se agora o hearing you e o reading you. Resta-nos, pelo menos por ora, a reserva do pensamento. É mesmo: a única coisa que permanece inexpugnável para o nosso irmão mais velho é a nossa mente, na medida em que fique solada e soldada, abstendo-se de se exprimir por sinais exteriores detetáveis. Não sei se a inteligência artificial se apetrechará um dia a ponto de nos conseguir ler o pensamento. Sei que isso teria um efeito abrasivo no convívio social e até na harmonia familiar. Precisamente por não haver machado que corte a raiz ao pensamento, ele não se deixa confinar nos sulcos do politicamente correto e socialmente benquisto. No uso da sua libertinagem impune, nem sempre se desenrola por trilhos agradáveis e lisonjeiros. Não será por acaso que o pensamento é tratado como fonte de pecado mesmo antes da consagração do Credo religioso, onde recebe equivalência face às palavras, aos atos e às omissõesO pensamento personifica, nesta era da intromissão como regra geral, a nova resistente aldeia gaulesa, onde as legiões romanas nunca conseguiram entrar. Esperemos ter a mesma sorte de Asterix e seus vizinhos, apesar dos esforços dos Ideafixes, que não se conformam com os resíduos de liberdade individual. 

Papel do Estado – A pandemia avivou, de uma forma coerciva e bruta, a discussão sobre o papel do Estado. A coisa saiu dos clássicos, de Hobbes, de Locke, de Rousseau e de tantos outros, para ganhar vida e expressão renovadas. As normas da DGS tornaram-se uma espécie de direito subsidiário face à lei geral, que para aquelas remete amiúde, colocando-as, deste modo, basicamente omnipresentes nas nossas rotinas. A velha expressão como manda a lei cedeu protagonismo face aos ubíquos mandamentos da autoridade de saúde. Até o respirar mereceu uma etiqueta própria. A DGS anda connosco na rua, nas lojas, nos transportes, na praia e no campo (exceto nos de futebol onde não poderemos mesmo ir de todo). Que inveja deverá sentir a DGS má, dos tempos pré-25 de Abril, do poder que tem esta DGS boa e querida, que zela por nós noite e dia, ensinando-nos e protegendo-nos. Dito isto, devo dizer que acho muito bem que assim seja. As pandemias obrigam a um esforço coletivo de combate, o qual só pode resultar com a adoção de regras que sejam obedecidas pela generalidade das pessoas. Temos de sentir o Estado com sentido de Estado e não ceder à tentação de que qualquer tipo de proselitismo nos afaste do que se impõe em benefício da coletividade. 

Atividades essenciais – No atual contexto o Estado tem desenvolvido um conjunto de atividades essenciais. Poderemos julgar a sua eficácia e a competência com que foram postas no terreno. Poderemos até não concordar com todas elas. Mas são absolutamente imprescindíveis. É fundamental que haja um serviço nacional de saúde tendencialmente gratuito e acessível à generalidade das pessoas; não se pode prescindir da função reguladora em matérias como a produção e distribuição de produtos e equipamentos de primeira necessidade; é patente a importância do funcionamento das entidades policiais, que garantem o acatamento das normas em vigor, de braço dado com o civismo que deve caracterizar as condutas individuais; ninguém pode desmerecer a importância dos mecanismos de lay-off entretanto implementados, como forma de amortecer a violência dos efeitos económicos nascidos entretantoTudo isto é verdade. Mas também é verdade o que Montesquieu teorizou como ninguém: quem tem o poder, tende a abusar dele. Com a colonização que o Estado impõe nas nossas vidas, realça-se a importância de poderes alternativos que coexistam no seu bojo. Entidades que vigiem as condutas específicas dos vetores legislativo e executivo e não deixem que as exceções havidas no Estado de Direito se transformem em exceções permanentes ao Estado de Direito. Este o papel capital da justiça.  Com os adereços do costume – a imparcialidade na venda, a ponderação na balança e a força na espada, acompanhados agora das máscaras nas audiências, segue indispensável na sua ação fiscalizadora e sancionatória. É o que esperamos dela. Abriu-se um novo debate sobre as funções do Estado. Ganharemos todos, se for feito com pedagogia e sem demagogia.