O ESTADO DA EUROPA. SOTEU – Reflexões sobre um discurso do estado da União. Pela primeira vez na história, o discurso do estado da União Europeia (SOTEU) foi feito no feminino. Com verdade e ambição, com coragem e realismo. Ursula von der Leyen assumiu sem tibiezas: “É momento de a Europa passar de fragilidade a nova vitalidade.” Assumiu a fragilidade da Europa, face à pandemia, face à economia, e até face à democracia (lapidar o aparte para um deputado AfD alemã: “Percebo que fique enfurecido quando falo na dignidade intrínseca e inquestionável de cada ser humano, independentemente do sítio onde nasceu, porque para a extrema direita só há dois tipos de pessoas: nós e eles”). Assumir que a Europa se encontra numa posição de fragilidade não pode ser uma tautologia, tem de ser um convite à ação. Num discurso em que se sitiou o mercado interno e a sua competitividade como fatores fulcrais do desenvolvimento da Europa que queremos, Ursula von der Leyen não fugiu à questão da pandemia, quer no plano da saúde dos cidadãos europeus – propondo o reforço das competências e dos orçamentos ao nível europeu de modo a preparar uma resposta enquanto aguardamos a vacina para a Covid-19 – quer no plano da economia, muito especialmente no impacto que a pandemia pode ter sobre os mercados de trabalho.
Proteger trabalhadores e empresas – Não resisto a citar um parágrafo na sua totalidade: “Quando assumi funções, comprometi-me a criar um instrumento destinado a proteger os trabalhadores e as empresas em relação a choques externos. E isto porque aprendi, enquanto ministra do Trabalho e dos Assuntos Sociais, que estes instrumentos são realmente eficazes. Permitem conservar os empregos, preservar as competências nas empresas e manter as PME em atividade. As PME são a força motriz da nossa economia e serão o principal motor da nossa recuperação. Foi por essa razão que a Comissão decidiu criar o programa SURE. Gostaria de agradecer igualmente ao Parlamento os esforços envidados neste campo em tempo recorde. Se a Europa conseguiu evitar, até à data, as enormes taxas de desemprego registadas noutras latitudes, tal deveu-se em grande parte ao facto de cerca de 40 milhões de pessoas se terem candidatado a regimes de tempo de trabalho reduzido.” A presidente da Comissão Europeia sabe do que fala. Esteve em funções, na área social e laboral, ao tempo da crise das dívidas soberanas, e sabe bem o impacto que as “ondas de choque”, quer internas, quer externas, podem ter sobre o mercado de trabalho. E falou da ajuda financeira de que Portugal pode beneficiar mais rapidamente e em tempo útil: o programa SURE. Portugal candidatou-se a uma verba de 5,9 mil milhões de euros. Dinheiro que não está dependente da negociação do próximo quadro financeiro plurianual, dinheiro que não está sujeito a veto de um ou outro “frugal”, e que pode servir para apoiar diretamente as empresas, especialmente PME, na tão necessária retoma económica e na manutenção de empregos.
Um rumo para o próximo ano – Mas o discurso não ficou por aqui. Assumiu uma nova ambição na dimensão do Pacto Ecológico Europeu de alocar 37% dos 750 mil milhões de euros a este objetivo; assumiu que a Europa tem de ter a capacidade de liderar a transformação digital, em especial nos dados, na tecnologia e nas infraestruturas, não deixando fugir o protagonismo nem para os EUA, nem para a China; e assumiu ainda que a Europa tem de ter uma nova abordagem relativamente às migrações, com a preocupação do que esta crise pode impactar na qualidade dos regimes democráticos e reafirmando os valores europeus inclusivos e não discriminatórios.
Foi um discurso perfeito? Claro que não, até porque isso não existe. E a nova vitalidade da Europa não depende de um só discurso, de uma só pessoa, ou de uma só instituição. Mas foi um discurso que apontou para linhas certas, traçou um caminho e que serve de guia e bússola para o que vai ser o trabalho da Comissão. Para o Conselho, para o Parlamento, torna-se claro o programa do próximo ano da Comissão. Para Portugal, que tem a presidência da União a partir de Janeiro, pode ser uma alavanca para muitas das matérias que deviam constar das nossas prioridades. Citando a imortal Agustina Bessa-Luís, para concluir também no feminino: “O país não precisa de quem diga o que está errado; precisa de quem saiba o que está certo.”