O CASO DOS UNIT-LINKED – Este é um caso singular sobre o funcionamento da justiça tributária e da errónea utilização de recursos públicos numa suposta prossecução do interesse público. Comecemos pelo início. Os seguros de capitalização unit-linked são um produto financeiro que combina uma apólice de seguro de vida, expressa em unidades de conta, cuja rentabilidade está indexada à valorização de um conjunto de ativos reinvestidos pela companhia de seguros (ações, obrigações, participação noutros fundos, etc.). Trata-se, pois, de um produto do ramo vida associado a uma carteira de investimentos detida pela companhia e cuja rentabilidade está indexada a um portefólio de ativos. Em termos práticos, o subscritor entrega 100€ à companhia, representando 100 UP de 1€, reinvestidos por esta noutros ativos. A valorização ou desvalorização destes ativos afetará o valor futuro das UP detidas pelo cliente e, consequentemente, o valor da apólice. Sem necessidade de grandes considerações, temos aqui duas relações jurídicas, de um lado (i) a relação entre a companhia e o segurado titulada por uma apólice; (ii) por outro, o fluxo de relações jurídicas e financeiras decorrentes dos investimentos realizados pela companhia no mercado, passíveis de gerarem rendimentos na esfera desta. Com efeito, a companhia com o dinheiro recebido investe em ações, recebe dividendos, realiza mais e menos-valias. Estes investimentos não pertencem ao segurado, pois este é titular de uma apólice materializada em UP, não sendo titular de quaisquer dos ativos subjacentes. Os rendimentos gerados pelos ativos são da companhia, ainda que esta tenha de provisionar as suas obrigações futuras perante os seus segurados. Aquando do resgate ou vencimento da apólice, os subscritores das mesmas são tributados em sede de IRS, de acordo com as regras aplicáveis.
O pomo da discórdia fiscal – Parece relativamente simples de entender. Qual é então o pomo da discórdia fiscal? As companhias de seguros estão obrigadas a dispor de provisões técnicas que cubram as suas obrigações futuras, sendo que tais provisões são dedutíveis fiscalmente. Assim, quando as companhias recebem dividendos dos ativos que investiram, tais dividendos constituem uma componente do seu lucro sujeito a imposto, e simultaneamente, as mesmas provisionam a valorização decorrente da UP por via de uma provisão dedutível. São movimentos simétricos, mas distintos fiscalmente. O atual artigo 51.º do CIRC – antigo 45.º – prevê a denominada eliminação da dupla tributação económica dos dividendos. Em suma, mediante a verificação de determinados requisitos tipificados na lei (e apenas estes atento o princípio da legalidade tributária), as empresas que disponham de uma participação qualificada numa subsidiária, ao receberem dividendos beneficiam de uma exclusão de tributação, pelo que os dividendos recebidos não concorrem para a sua matéria coletável. Naturalmente, as companhias socorreram-se deste mecanismo no que respeita aos dividendos recebidos dos ativos em que reinvestiram capital referente aos unit-linked.
Uma longa novela – A AT sempre discordou deste entendimento, utilizando uma miríade de argumentos. Que os ativos não eram da companhia, que esta apenas recebia uma comissão, que os dividendos recebidos não eram uma componente do seu lucro pois estavam cobertas pelas provisões técnicas, etc. Trata-se de um litígio com quase 20 anos, com dezenas de processos, em que a AT perdeu todos os processos, seja no STA, no TCA ou nos tribunais arbitrais. Em todos foi recorrendo. E não satisfeita, depois de perder nos tribunais, na Lei do OE/2016, foi alterado o artigo 51.º do CIRC, excluindo, expressamente, os dividendos afetos a provisões técnicas e que não sejam imputáveis aos segurados. Trata-se de uma previsão normativa nova, inovadora, à qual se pretendeu atribuir natureza interpretativa, permitindo a sua aplicação a factos consumados antes da entrada em vigor da Lei n.º 7/A/2016, de 30 de março. Trata-se de um expediente relativamente usual para contornar a proibição de aplicação de leis retroativas em matéria fiscal. Esta longa novela terminou recentemente com o Acórdão do TC n.º 101/2021, interposto pela AT e pelo MP, o qual julgou inconstitucional a norma da Lei do Orçamento que atribuía natureza interpretativa à nova redação do n.º 6 do artigo 51.º do CIRC. Chegou ao fim, mas com enormes custos para todas as partes envolvidas e sem responsáveis, pois em matéria de litigância pública e tributária vivemos num mundo de total inimputabilidade.
Nota final. Não posso deixar de dar os parabéns pelos 14 anos da FRONTLINE e pelo seu esforço contínuo de contribuir para uma informação livre e plural. Fica aqui o meu abraço a toda a equipa que vai mantendo vivo este projeto diferenciado no mercado.