MIGUEL GUIMARÃES

NO INÍCIO ERA A EQUIDADE, A SOLIDARIEDADE E OS MÉDICOS – Estamos perto de chegar aos 43 anos de existência da maior conquista da nossa democracia – a par da liberdade. O Serviço Nacional de Saúde (SNS) foi criado e desenvolvido graças ao trabalho, dedicação e resiliência de várias gerações de médicos e profissionais de saúde que fizeram, e fazem, todos os dias, o SNS. Fizeram-no construindo serviços, transmitindo conhecimento a milhares de jovens, salvando milhões de portugueses e restituindo-lhes o seu bem mais precioso: a saúde. 

 No início era a equidade. Alcançada através de esforços corajosos de vários médicos, com primórdios no Serviço Médico à Periferia (1974-1982). No início, sem SNS, vivíamos num país a duas velocidades polarizadas, onde grande parte da população dispersa no território nunca tinha visto um médico ou vendia os seus próprios bens para conseguir pagar uma consulta na cidade. Foi uma geração de médicos que se deslocou ao interior do país para lançar as bases do nosso serviço público de saúde e, provavelmente, sem o saberem, as bases da consolidação democrática. Foi este notável ponto de partida que permitiu o início do princípio da equidade no sentido de fazer chegar cuidados de saúde a todo o país. 

Não esquecemos também, hoje e sempre, o importante papel de António Arnaut, que teve a visão e a coragem política de transformar em lei (56/79) aquilo que os médicos sonharam, projetaram e planearam para os portugueses: um serviço público que assegurasse cuidados de saúde de qualidade e acessíveis para todos, independentes das assimetrias geográficas e que, simultaneamente, fosse capaz de garantir formação de elevada qualidade. Fizeram-no construindo a carreira médica, melhorando, por consequência de todos estes fatores, qualquer indicador de saúde global. Este contexto é importante, porque a memória dos nossos decisores está cada vez mais curta (ou estará apenas mais enviesada?). 

No início era a solidariedade. Visível, por exemplo, na formação médica. Onde os mais experientes ensinam os mais novos e os mais novos contribuem com inovação e na atualização dos mais experientes. Isso não mudou e a Ordem dos Médicos continuará a pugnar pela qualidade da medicina, através da formação médica (mas não só). O que mudou foi a insaciedade política – que já está rotinada desde há alguns anos – de encontrar bodes expiatórios, negando evidências e empurrando responsabilidades. A verdade é que a partir do momento em que o planeamento, organização e gestão do SNS ficou a cargo dos políticos, começou-se a navegar à vista, sendo alvo de tomadas de decisão para cumprir objetivos imediatos, com consequências arrasadoras para todos, profissionais e doentes.  

No início eram os médicos. E ainda o são. Serão sempre os médicos. Aqueles que fazem milhões de horas extraordinárias por ano (2021 bateu o recorde com os profissionais do SNS a realizarem perto de 21,9 milhões de horas extra, um acréscimo de 26% em relação a 2020, de acordo com o Portal do SNS). Aqueles que abdicaram de tempo com a família, com os seus filhos, com os seus cônjuges, e que em casos extremos deram a sua vida para cuidar dos seus doentes durante a pandemia, sem nunca deixar ninguém para trás. Aqueles que fizeram um juramento e cumprem-no todos os dias em prol da humanidade. Aqueles que apenas querem ser valorizados e dignificados para conseguirem continuar a dar o seu contributo insubstituível num SNS que está cada vez mais doente, ficando de pé apenas porque os médicos e os profissionais de saúde o carregam às costas. 

É urgente ajudar o SNS porque o peso está a ficar demasiado grande para as mulheres e os homens que o suportam. E não vale a pena continuar a dizer que há falta de médicos em Portugal porque a verdade é que os números nunca nos dizem tudo, mas nunca mentem. De acordo com os dados mais recentes da OCDE, Portugal é o terceiro país com mais médicos por mil habitantes (5,3), quando a média é de 3,6, tal como é um dos países que tem mais novos estudantes de Medicina por ano – 15,8 por 100 mil habitantes, quando a média é de 13,5. O que precisamos é de respeitar e dignificar os médicos e os profissionais de saúde, valorizar a carreira médica e a formação, com salários justos de acordo com a intensa formação no ensino superior, conhecimento, responsabilidade e competências adquiridas. 

Somos [Ordem dos Médicos] amiúde acusados na praça pública, por vozes menos informadas, de impedirmos o aumento das vagas para os cursos de Medicina. Vale a pena voltar a esclarecer que a definição do numerus claususnos cursos de Medicina é da competência da Direção-Geral do Ensino Superior, na dependência do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, e não da Ordem dos Médicos. A Ordem dos Médicos nem sequer é ouvida. Mesmo assim, importa lembrar que os ingressos no curso de Medicina mais do que duplicaram em apenas 20 anos, de cerca de 600 vagas em 1999 para mais de 1500. Importa também recordar que este aumento de vagas tem levado a uma maior insatisfação no terreno com a qualidade da formação, seja pela limitação das infraestruturas físicas, seja pela dificuldade de resposta em termos de tutoria e ensino clínico prático, uma vez que os quadros mais experientes do SNS têm saído do setor público, seja por aposentação ou para setor privado, social e estrangeiro. Ao falarmos do estrangeiro, vale a pena referir que os médicos de outros países que queiram exercer Medicina em Portugal têm de ter o seu curso reconhecido pelas universidades portuguesas – escolas médicas. Após este reconhecimento, a Ordem apenas exige uma prova de comunicação (em parceria com o Instituto Camões) para garantir que os colegas dominam o nosso idioma – elemento essencial na relação médico/doente. A Ordem não cria obstáculos, nunca os criou. Apenas defende aquilo a que todos os portugueses têm direito: uma medicina de qualidade. 

Nós fazemos a nossa parte. É tempo de os políticos fazerem a sua e adaptarem o SNS aos tempos modernos. Só assim teremos um serviço público preparado para proteger, cuidar e tratar dos cerca de 10 milhões de portugueses, contribuindo para esbater as desigualdades sociais em saúde e garantir o acesso a cuidados de saúde de qualidade em tempo clinicamente aceitável. Como nos disse Martin Luther King Jr: “Hoje é sempre o dia certo, de fazer as coisas certas, de maneira certa. Amanhã será tarde. 

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