MIGUEL GUIMARÃES

SER MÉDICO – No dia 19 de maio assinala-se, desde 2010, o Dia Mundial do Médico de Família. A iniciativa partiu da WONCA – World Organization of National Colleges, Academies and Academic Associations of General Practitioners/Family Physicians – que é a organização representativa dos médicos de família a nível mundial.

O objetivo da efeméride é promover a importância dos cuidados de saúde da pessoa e da sua família, valorizando o papel destes médicos especialistas na saúde e bem-estar do agregado familiar. Um objetivo que é nobre e faz cada vez mais sentido, sobretudo numa altura em que em Portugal continuamos, especialmente desde a pandemia, a não deixar que os médicos de família cumpram em pleno o que sabem fazer melhor: exercer medicina sem perturbações.

Sistemas informáticos dispersos e disfuncionais, com informação difundida por vários softwaresque “não falam” entre si, escassa integração de cuidados por falta de um processo único do doente que seja partilhado (com segurança) entre as diferentes estruturas de saúde e falta de comunicação entre os cuidados de saúde primários e hospitalares, que continua a não ser uma prioridade das políticas do setor, são apenas alguns dos problemas que vão insistindo em perdurar no tempo – com prejuízos incalculáveis.

Aos problemas estruturais supracitados juntam-se várias tarefas que os colegas de Medicina Geral e Familiar garantem e que consomem tempo que deveria estar a ser utilizado junto dos seus doentes: excesso de emissão de atestados, declarações, trabalho administrativo, trabalho burocrático… algumas tarefas que, no fundo, podiam ser garantidas por outro tipo de profissionais que não têm à sua responsabilidade uma lista de 1900 utentes.

Os problemas estão identificados, agravaram-se devido à pandemia e voltaram a ser diagnosticados. Todos sabemos o que é preciso mudar. A principal reivindicação destes especialistas não podia ser mais simples: os médicos de família querem fazer medicina. Se é verdade que Freud afirmou que “o pensamento é o ensaio da ação”, é igualmente um facto que já ensaiámos bastante. Agora é tempo de fazer realmente a diferença. Os portugueses agradecem e os médicos de família têm de ser valorizados na prática para permanecerem no Serviço Nacional de Saúde (SNS).

Escassez de médicos

Os decisores políticos têm de perceber que não haverá SNS sem médicos de família e, infelizmente, o mais recente balanço de dados da própria ACSS indica que existem 1,3 milhões de portugueses sem médico de família atribuído. Um número dramático que tem vindo a crescer sistematicamente e que pode ainda piorar já que cerca de 1000 médicos de família entrarão em idade da reforma ainda este ano. A estes, somam-se 400 que podem vir a reformar-se em 2023 e quase 300 em 2024.

Não vale a pena dizer que esta escassez se deve a uma alegada falta de acesso à formação ou à profissão. Os números rebatem este argumento utilizado por vezes como “passa-culpas” irresponsável e leviano. Todos os anos, durante a última década, terminaram a especialidade de Medicina Geral e Familiar cerca de 500 médicos. O problema é que, destes, só cerca de 350 (70%) ingressam nos concursos abertos e muitos acabam por sair do SNS nos anos subsequentes. Situação que não mudará enquanto o serviço público de saúde não se tornar competitivo em relação ao setor privado e também ao estrangeiro.

A competitividade relativamente aos cuidados de saúde primários chegará também com a valorização da excelência do trabalho e responsabilidade destes profissionais. São necessários, pelo menos, 11 anos para formar um médico de Medicina Geral e Familiar: seis anos no curso de Medicina, um ano de formação geral e quatro anos de formação específica. A qualidade desta formação é inegociável, é um padrão que temos a obrigação de manter enquanto sociedade. Estamos a falar de uma especialidade generalista e complexa, não “simplista”. É, aliás, das poucas especialidades médicas que acompanha e abrange todas as fases de uma vida.

Valorizar o capital humano

Não há nenhuma profissão que conjugue todos estes anos de formação com o nível de responsabilidade diário. Isto é verdade para qualquer especialidade médica. Só teremos uma saúde mais forte se valorizarmos o trabalho dos médicos de acordo com aquilo que são as suas competências, o seu conhecimento e a sua formação.

Enquanto na grande maioria dos países europeus os médicos têm direito a um salário justo e diferenciado, em Portugal a remuneração continua a cair todos os anos, de acordo com dados do Health at a Glanceda OCDE. Mas não se trata só de remuneração. É mais do que isso. É ter a noção plena de que valorizar e tratar bem o capital humano é uma questão de respeito e de justiça e é crucial para conseguirmos continuar a tratar, com excelência, todos os doentes.

Os anos de pandemia que assolaram os nossos serviços de saúde vieram colocar ainda mais às claras muitos dos problemas crónicos que já existiam. Problemas que só têm tido resposta graças à resiliência, solidariedade, humanismo e competência dos médicos e dos profissionais de saúde. Mas qualquer elástico que estica, parte. O burnoute o sofrimento ético dos médicos é uma realidade constante nos serviços de saúde, criando problemas inimagináveis.

No caso da Medicina Geral e Familiar existem algumas potenciais soluções que têm sido abordadas e propostas nas últimas semanas. E claro, deixar também os médicos de família exercer a medicina em que acreditam quando decidiram ser médicos, sem amarras, sem burocracias, sem trabalho administrativo limitantes da atividade clínica. Os nossos doentes agradecem.

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