IMUNIZAÇÃO OU GEOPOLÍTICA? – A saúde é um fator crítico para o sucesso de todas as políticas, e sem a priorizarmos nas várias áreas de atividade dificilmente poderemos ser um país pujante e que compita internacionalmente de forma favorável. Quem todos os dias procura proteger e salvar vidas, e melhorar a qualidade dos anos que os nossos doentes vivem, nunca duvidou da importância e centralidade da saúde para todas as áreas de atividade. Desta forma, esta pandemia apenas veio acentuar o que para os médicos e outros profissionais de saúde era uma evidência: a saúde é um fator crítico para o sucesso de todas as políticas e sem a priorizarmos nas várias áreas de atividade dificilmente poderemos ser um país pujante e que compita internacionalmente de forma favorável. A Covid-19 acentuou a urgência de reforçarmos o nosso Serviço Nacional de Saúde, o que implica mais investimento, mas também uma estratégia de valorização das pessoas que o constroem todos os dias e que, mesmo em circunstâncias muito adversas, deram provas de superação, qualidade, resiliência e humanismo.
INTERESSES ECONÓMICOS E GEOPOLÍTICOS – O ideal, temos de reconhecer, é que a valorização da saúde fosse defendida e alcançada por direito natural e que o altruísmo dos vários países tivesse um fundo verdadeiramente preocupado com a essência dos valores. Contudo, sabemos que nem sempre é assim e que o dossier pandemia tem sido gerido sobretudo com interesses económicos e geopolíticos a determinarem o caminho – muito em particular no que diz respeito à gestão mundial, europeia e nacional dos vários planos de vacinação contra a Covid-19. Este é um verdadeiro travão ao sucesso global, como recentemente destacou o secretário-geral das Nações Unidas, e todos podemos fazer diferente e melhor – com Portugal a poder ter um papel mais preponderante, por exemplo, junto da Comunidade de Países de Língua Portuguesa. “O lançamento de vacinas gerou esperança, deram-se passos importantes na criação do mecanismo Covax e uma lista crescente de países está a receber as vacinas através deste mecanismo. Mas preocupa-me profundamente que muitos países com baixo poder económico não tenham ainda recebido uma só dose, enquanto os mais ricos estão a caminho de vacinar toda a sua população. (…) A campanha mundial de vacinação contra a Covid-19 é a maior prova moral do nosso tempo”, destacou António Guterres. Aliás, na própria União Europeia assistimos ao melhor e ao pior no que a este dossier diz respeito. Se, por um lado, e bem, houve uma tentativa de investimento e compra conjunta, a verdade é que na operacionalização falhou a ideia de conjunto, sobretudo quanto às recomendações para as diferentes vacinas perante potenciais efeitos adversos.
Em Portugal o Plano de Vacinação contra a Covid-19 também arrancou com problemas e caiu-se na tentação de alimentar notícias sobre a imunização com uma cadência de anúncios de novos grupos prioritários a vacinar quando as bases do edifício imunitário não tinham sido alcançadas, isto é, quando os mais velhos e os mais expostos ao risco, como é o caso dos médicos e dos outros profissionais de saúde, ainda não tinham tido acesso à vacina. Felizmente a nova coordenação da task-force analisou o que estava a acontecer, ouviu quem estava no terreno e acedeu a fazer mudanças. Foi neste contexto que o vice-almirante Henrique de Gouveia e Melo confiou à Ordem dos Médicos a missão de contactar e vacinar todos os médicos que estavam a ficar para trás, muito em particular os que já não detinham vínculo ao Serviço Nacional de Saúde.
O CONTRIBUTO DA ORDEM DOS MÉDICOS – A postura de cooperação e abertura a que assistimos permitiu que, enquanto bastonário, conseguisse que a Ordem dos Médicos fosse uma vez mais um agente determinante para que Portugal vença esta pandemia. Vacinar todos os médicos não é uma questão corporativa. Ou melhor, é. Não podemos é imprimir um pendor negativo a esta palavra. Neste caso o corporativismo permitirá que os médicos não adoeçam, protegendo a sua própria vida e das suas famílias, mas também – e sobretudo – continuando disponíveis para cuidar e proteger os doentes que no último ano tantas barreiras tiveram no acesso a cuidados de saúde. Se a ética utilitária que levou a Organização Mundial de Saúde e a Comissão Europeia a elegerem os profissionais de saúde como grupo prioritário é uma visão corporativista, então precisamos todos de um mundo mais corporativo e menos geopolítico, pelo menos com o pendor que a palavra tem vindo a ter. Nada ficará bem enquanto houver alguém deixado para trás, como tantas vezes tem repetido a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen. A Ordem dos Médicos tem estado sempre disponível para avançar, coordenar ou apoiar projetos que melhorem a saúde de todos nós. São dezenas os exemplos recentes, muito em particular com a pandemia, em que contribuímos para uma melhor literacia, levámos material de proteção a mais de 1000 instituições e desenvolvemos, em conjunto com a SYSADVANCE, o primeiro ventilador português com certificação europeia. Temos um papel regulador da profissão, mas temos também um papel de defesa da saúde de todos e de uma medicina de qualidade que é garante de um caminho de progresso e equidade.
Somos muitas vezes uma voz incómoda, que está no terreno e que não abdica do direito e do dever de defender os doentes e lutar para tornar as nossas instituições de saúde em lugares melhores para quem lá trabalha e para quem delas precisa em momento de grande fragilidade. Nos últimos tempos, sinal de doença da nossa democracia, têm sido cada vez mais frequentes os ataques diretos e indiretos a todos os que não abdicam da liberdade de exercer a sua cidadania em prol de uma sociedade melhor. Mas prometemos não desistir e continuar a defender o acesso e a qualidade dos cuidados de saúde. É o momento de respeitar a vontade dos portugueses e investir numa saúde universal, solidária e humanista, que respeite a dignidade e os direitos fundamentais de todas as pessoas.