MÉDICOS E SAÚDE
No século XX os médicos tiveram um papel determinante na evolução da sociedade portuguesa em todas as áreas da saúde e, em especial, na extensão da assistência médica ao território nacional e no planeamento e organização do ensino médico, da investigação, dos hospitais e dos centros de saúde.
Os médicos foram decisivos na criação do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Basta recordar o que aconteceu durante o Serviço Médico à Periferia, a construção da rede do futuro SNS, ou o papel de Miller Guerra na publicação do Relatório sobre as Carreiras Médicas (embrião do futuro SNS). De resto, a lei do SNS passou pelas mãos de António Arnaut (no plano jurídico e político) e dos médicos Mário Mendes e Gonçalves Ferreira. E uma parte significativa do desenvolvimento do SNS e da Carreira Médica passou pelas mãos de Paulo Mendo. Neste percurso os médicos desenvolveram e modernizaram a formação médica especializada, tornando-a uma referência a nível nacional e internacional.
Em 2019, ano pré-pandémico, de acordo com os dados disponíveis, os médicos faziam em cada 24 horas no SNS 118.825 consultas, 17.440 episódios de urgência, 2.149 internamentos, 1.841 intervenções cirúrgicas, 190 partos, 2,5 transplantes de órgãos, e muitos milhares de procedimentos como biópsias, endoscopias, exames histológicos e outros exames complementares de diagnóstico e terapêutica em praticamente todas as especialidades. Hoje, o número de atos médicos realizados em 24 horas é ainda maior.
Ser médico especialista significa conseguir ter classificação para entrar num curso de medicina, realizar a prova nacional de acesso à especialidade, estudar e trabalhar no ensino superior durante 11 a 13 anos, submeter-se a múltiplos concursos públicos com júris idóneos, prestar provas teóricas e práticas ao longo de todo o seu percurso, publicar estudos científicos e continuar (para além dos 11 a 13 anos) a submeter-se a concursos públicos para progredir na carreira médica.
Saúde em Portugal
O retrato da saúde em Portugal nos últimos anos é conhecido e tem sido divulgado nos órgãos de comunicação social. Mais os aspetos negativos. Menos os positivos que são a imensa maioria. Os resultados clínicos mostram a excelência da medicina praticada em Portugal, com base na qualidade da formação médica e na resiliência, humanismo e solidariedade dos médicos, que em muitas áreas, são melhores do que a média dos resultados dos países da União Europeia e da OCDE. As dificuldades no acesso, sobretudo em algumas regiões do país, mostram, nos últimos oito anos, a incapacidade política de implementar as reformas estruturais necessárias para modernizar o SNS e dignificar e valorizar o trabalho dos médicos e profissionais de saúde que fazem o SNS.
Por vezes, até parece que temos um país a duas velocidades. Numas regiões, foi possível planear e melhorar a gestão organizacional, noutras tal não aconteceu. Numas regiões, todos os cidadãos têm médico de família atribuído e raramente encerram serviços médicos, noutras não. Numas regiões, existem médicos suficientes para garantir o acesso aos cuidados de saúde, noutras não. E o que é mais estranho é que o diagnóstico global está feito. E nada ou quase tem acontecido ao longo dos anos.
Portugal é um dos países da OCDE que mais médicos forma e mais médicos tem per capita. Portugal forma anualmente 16,5 médicos por 100 mil habitantes, número superior à média europeia (15,3). No relatório da OCDE de 2023, Portugal tem 5,6 médicos por mil habitantes (inclui reformados, muitos ainda em atividade), um valor bem acima da média europeia (4,1). Mas só cerca de metade dos médicos, formalmente no ativo, estão no SNS (2,2 por mil habitantes). E destes, um número significativo tem horários de trabalho reduzidos. Portugal é também um dos países europeus que mais escolas médicas tem por milhão de habitantes (1,1). A mediana europeia é de 0,6.
Já todos sabemos que precisamos de um novo modelo de gestão e organização dos serviços de saúde (o exemplo das parcerias público-privadas na saúde mostrou de forma inequívoca a necessidade imperiosa de um novo modelo de gestão para o SNS).
Sabemos também que muitos dos médicos formados em Portugal optam por não continuar a trabalhar no SNS e escolhem o setor privado ou o estrangeiro para exercer a sua profissão. E os motivos são conhecidos, e podem ser sintetizados em melhores condições globais de trabalho. De resto, os médicos especialistas que trabalham em Portugal têm salários muito inferiores aos que trabalham na maioria dos países europeus (os terceiros mais baixos dos países da OCDE – dados de 2022).
Elevada qualidade de formação
Portugal tem mantido ao longo dos anos uma elevada qualidade de formação de médicos especialistas. Esta qualidade é a principal responsável pelos excelentes resultados e indicadores que Portugal apresenta em diversas áreas da medicina. Mas, continuamos a ter dificuldades no acesso em áreas críticas.
Alguns pilares fundamentais e estruturantes do SNS têm de ser reformados no sentido de melhorarmos a nossa resposta no acesso a todos os cuidados de saúde nos seus diferentes níveis (cuidados primários, hospitalares, serviços de urgência e emergência médica, cuidados paliativos e continuados, cuidados domiciliários, promoção da saúde). E ter como base a valorização dos médicos e dos profissionais de saúde, nomeadamente através das carreiras, a modernização da gestão e organização dos serviços, a implementação da digitalização associada à inteligência artificial (incluindo o processo clínico único eletrónico), a simplificação de processos e procedimentos (eliminando a burocracia e tarefas administrativas atribuídas aos médicos), o reforço do trabalho em equipas multiprofissionais e multidisciplinares, e a otimização da cooperação eficiente entre os diversos setores da saúde.
O princípio e o fim do SNS têm nomes e rostos. E têm biografias e dramas. São as pessoas. E é isto que nos deve unir a todos num desígnio nacional: saúde para todos.