URGÊNCIA NA SAÚDE
No último ano os problemas no acesso aos cuidados de saúde agravaram-se de forma muito significativa. No período normal de trabalho, os tempos de espera para acesso a primeiras consultas hospitalares ou para acesso a cirurgias sofreu uma derrapagem importante, parcialmente compensada pela “produção acrescida”.
Ter de esperar mais de um ano para ter acesso a uma consulta de especialidade ou para ter acesso a uma cirurgia, é preocupante e inaceitável. Os portugueses pagam através dos seus impostos (que são cada vez mais elevados) cuidados de saúde que ultrapassam largamente e numa percentagem expressiva de casos, os chamados tempos máximos de resposta garantidos (TMRG).
Nos cuidados de saúde primários o número de utentes sem médico de família atribuído já ultrapassa os 1,5 milhões. Uma parte significativa destes utentes, que têm necessidade de cuidados médicos, quando recorrem a uma consulta aberta, apesar de comparecerem nos seus centros de saúde de madrugada, acabam por não ter o sucesso desejado. São muitos utentes e poucos médicos.
O acesso a cuidados continuados continua a ser limitado pela ausência de resposta às necessidades dos doentes e dos hospitais. Vale a pena recordar que o valor de uma cama de internamento é muito mais caro que uma cama de cuidados continuados, e que a permanência nos hospitais para além do tempo necessário pode resultar em complicações indesejadas (nomeadamente infeções).
Nos cuidados paliativos o acesso continua a ser muito limitado, num país em que recentemente foi legislada a “eutanásia e o suicídio assistido”!
ESPERANÇA MÉDIA DE VIDA
A esperança média de vida em Portugal é um indicador do qual nos podemos orgulhar. Mas a qualidade de vida a partir dos 65 anos é, infelizmente, baixa e das piores da União Europeia. A carga de doença crónica é elevada, das mais altas da União Europeia. A esta situação não é alheio o baixo investimento em promoção da saúde e prevenção da doença, o que agrava a sustentabilidade dos serviços de saúde e o objetivo principal de qualquer serviço público de saúde, ter mais pessoas saudáveis e menos pessoas doentes. Fica a ideia de que o nosso Ministério da Saúde(MS) mais parece o Ministério da Doença.
A aposta forte na inovação, na investigação e no investimento, aguarda melhores dias. A hospitalização privada começou bem, mas estagnou. A ausência de uma política de qualidade que valorize a informação e os resultados é preocupante. A verdadeira literacia em saúde continua a ser uma miragem.
A governação (governance), o planeamento, a organização e o novo modelo de gestão continuam no “segredo dos deuses”. Porquê? Ninguém sabe. É assim e pronto. Promete-se muito, mas continua tudo na mesma. No meio desta indefinição, falta de estratégia e decisões, salva-se a excelente qualidade da formação das diferentes profissões da saúde em que o papel das ordens profissionais é determinante.
SERVIÇOS DE URGÊNCIA
Com isto chegamos à ponta do “icebergue”: os serviços de urgência (SU). Que estão numa situação crítica em vários locais do país. E é fácil de entender porque é que os doentes recorrem aos SU (com ou sem uma situação urgente). E também porque é que o Governo “empurra” as pessoas para os SU. Porque não apresenta alternativas autênticas. Porque não quer fazer os investimentos necessários. Porque é mais cómodo, mais fácil e mais barato. Porque não quer resolver os problemas reais do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Porque não quer modernizar o SNS. Porque não quer fazer as reformas necessárias. Porque não quer valorizar a carreira das profissões da saúde, nomeadamente dos médicos. Porque a estratégia seguida nos últimos anos é “deixar andar”.
Assim, o Governo vai empurrando para o setor privado os doentes que têm capacidade económica e aqueles que vão tendo alguma capacidade para ter um seguro de saúde (o número de cidadãos que têm seguro de saúde, incluindo a ADSE, já ultrapassa os 45%). Por isso, neste momento, o SNS já não é o maior prestador de cuidados de saúde em Portugal (Miguel Gouveia), embora continue a ser o maior financiador.
UM NOVO SNS
Ou seja, dito de outra forma, o Governo está a destruir o SNS e, sobretudo, a sua matriz genética: a equidade no acesso já não existe, a dignidade está a ficar em segundo plano e a solidariedade já não é o que era. Na verdade, o Governo está a criar um novo SNS para as pessoas que não têm possibilidade de recorrer diretamente ao setor privado, e para os doentes que têm situações clínicas graves ou para doenças que só são tratadas no SNS. Um desastre nacional que não dignifica a nossa história, naquela que foi a segunda maior conquista da nossa democracia a seguir à liberdade, o SNS. E também por isso, é fácil de entender as negociações entre o MS e os Sindicatos Médicos (SM). Afirmei recentemente: “As propostas do MS não têm respeitado a equidade entre todos os médicos, não dignificam a profissão médica, não salvaguardam os direitos dos doentes, nem valorizam a carreira médica […] Os médicos são uma das duas profissões em que hoje o seu ganho médio mensal é inferior há dez anos atrás (DGAEP). Tiveram uma perda de poder de compra real de mais de 30%. Têm dos piores salários da Europa (Eurostat 2022). Têm uma formação no ensino superior entre 11 e 13 anos. Fazem um número sem fim de horas extraordinárias […] A proposta dos SM é sensata e justa. O MS devia ter mais respeito pelos médicos.” (1)
- https://24.sapo.pt/amp/opiniao/artigos/salvar-o-sns-honrar-os-medicos-de-beatriz-angelo-a-joao-semedo