MIGUEL GUIMARÃES

ENQUANTO HOUVER PERNAS PARA ANDAR – Solidariedade, equidade e dignidade. São estes os três pilares que construíram o Serviço Nacional de Saúde (SNS) e que se tornaram nas linhas orientadoras que os médicos, e os outros profissionais, colocaram em prática naquela que é a maior conquista democrática, a par da liberdade: o acesso de sãos cuidados de saúde.

Infelizmente, nos dias de hoje, apenas a solidariedade se mantém intacta, exclusivamente pela resiliência e pelo humanismo dos médico e profissionais de saúde. A longo de vários anos, quer seja por más decisões, ou por não terem sido tomadas as decisões necessárias, a equidade de acesso ao serviço público de saúde desvaneceu-se. Um cidadão de Viana do Castelo não tem, hoje, o mesmo acesso que um cidadão de Lisboa. O mesmo se pode dizer de um doente de Beja, comparado com um doente do Porto. Na nossa estrada coletiva, caminhamos a duas velocidades. Infelizmente. A saúde tem sido sempre o principal garante de estabilidade social. Contribui para que tenhamos uma população mais saudável, produtiva e feliz. Sem saúde não há país.

OS ÚLTIMOS 40 ANOS

Os nossos decisores políticos insistem nas medidas e nos decretos de remendo, esquecendo o que é estrutural. Assim se demonstra, pelos mais variados indicadores disponíveis, que o SNS não acompanhou a evolução dos últimos 40 anos. As necessidades em saúde aumentaram, o número de doentes aumentou, a carga de doença crónica é das mais elevadas da Europa. No entanto, a nossa rede hospitalar é similar à que existia há 40 anos, assim como o nosso modelo de gestão. Continuamos sem ter um verdadeiro programa de literacia em saúde. Todos os meses há notícias de que mais utentes ficaram sem o seu médico de família. Já não é apenas uma questão de modernizar o SNS e de resolver a sua parca capacidade de competir com o setor privado e com as condições oferecidas no estrangeiro. É uma questão de nos relembrarmos do básico. De recuperarmos os objetivos fundamentais que criaram o SNS e pelos quais tantos médicos lutaram, desde logo através do serviço médico à periferia.

“Enquanto houver estrada para andar”, como cantou Jorge Palma na sua música que agora tanto é citada no Parlamento, “a gente vai continuar”. Porque os médicos sempre continuaram, muitas vezes com prejuízo para a sua vida pessoal. Mas para que a estrada se torne menos turbulenta, não é possível continuar a adiar a revisão da carreira médica. Nem a efetiva (e justa) valorização da formação, competência e responsabilidade dos médicos portugueses. Começar por aí ajudará a resolver tudo o resto. Avancemos com esperança no futuro. Esperança de que o SNS se torne mais atrativo.

A ORDEM DOS MÉDICOS

A minha certeza é de que a Ordem dos Médicos (OM) continuará a trabalhar para defender a qualidade da Medicina e a segurança clínica dos doentes, como o tem feito ativamente durante os meus seis anos enquanto bastonário. Foram dois mandatos muito diferentes. O primeiro, vivido durante um tempo considerado normal, onde atingimos muitos dos objetivos a que nos propusemos. O segundo mandato ficou marcado pela pandemia SARS-CoV-2. Orgulho-me de poder afirmar que, enquanto bastonário, liderei uma equipa que procurou sempre promover um sistema de saúde assente no humanismo, na solidariedade, na equidade – os mesmos valores que caracterizaram o código genético do SNS aquando da sua criação em 1979. Desenvolvemos e concretizámos incontáveis ações que podem ser divididas em macrotemáticas. No âmbito da qualidade da Medicina, foram publicados em Diário da República o Regulamento do ato médico, o Regulamento da constituição das equipas-tipo de urgência e o Regulamento dos tempos padrão de consultas e exames – este último, decisivo para proteger a relação médico-doente. Publicámos ainda, com a Direção-Geral da Saúde, várias normas

No âmbito da qualidade da Medicina, foram publicados em Diário da República o Regulamento do ato médico, o Regulamento da constituição das equipas-tipo de urgência e o Regulamento dos tempos padrão de consultas e exames – este último decisivo para proteger a relação médico-doente. Publicámos ainda, com a Direção-Geral da Saúde, várias normas de orientação clínica. No que concerne à carreira e formação, destaca-se, por exemplo, a participação no Regulamento do internato médico, a criação do Fundo de Apoio `Formação Médica e o desenvolvimento da nova Prova Nacional de Acesso (PNA), que substituiu o famoso e ultrapassado Harrison.

PILARES DE ATUAÇÃO

A relação médico-doente é um património imaterial da humanidade que funcionou sempre como um farol da atuação da OM. Nesse sentido, publicámos um livro sobre o tema, que reúne contributos de inúmeras personalidades nacionais e internacionais, marcando o pontapé de saída para criar uma base de proposta para elevar a relação  médico-doente a património imaterial da humanidade pela UNESCO. Também o  apoio aos médicos, nas suas diferentes vertentes, foi um dos pilares de atuação da OM. Nesse sentido, foi criado um Grupo de Apoio aos médicos vítimas de  burnout,  sofrimento ético e violência, bem como foi dado apoio direto aos médicos que apresentaram declarações de escusa de responsabilidade. Enquanto bastonário, visitei centenas de hospitais e centros de saúde para ouvir e apoiar os médicos. Não há melhor fonte de conhecimento e de ação do que estar no terreno, com quem faz todos os dias a nossa saúde acontecer.

A própria OM também se modernizou nestes últimos anos. Foi implementado o voto eletrónico em todos os atos eleitorais da instituição, foi criado o Balcão Único Virtual para acesso digital a pedidos e receção de documentos e apostámos numa comunicação digital mais próxima com os médicos, onde a nossa newsletter e os nossos sistemas informáticos muito contribuíram para este quesito.

Antes e durante a pandemia a OM desempenhou um papel crucial na luta contra o vírus através de centenas de recomendações, notas de imprensa e intervenções públicas, que permitiram, em muitos casos, informar a população e ajudar as autoridades de Saúde. Em fevereiro de 2020, ainda antes do primeiro caso confirmado em Portugal, criámos o Gabinete de Crise, o que mostrou que a OM – e a própria sociedade civil – foram proativas na procura de soluções. Se alguém ainda tinha dúvidas sobre o que era a liderança médica, durante a pandemia deixou de ter. Os médicos estiveram na linha da frente em todas as áreas.

Haveria muitas mais medidas por enumerar, mas por economia de espaço não é possível. Convido-vos a aceder, em www.ordemdosmedicos.pt/ordem-em-balanco, a uma lista mais pormenorizada sobre a atuação da OM desde 2017.

Deixarei a minha função de bastonário da Ordem do Médicos com o sentimento de dever cumprido. Com uma tremenda gratidão a todos os que trabalharam comigo e ajudaram a concretizar todos os projetos em que nos envolvemos. A OM está diferente. Ganhou uma nova dimensão junto da sociedade civil e de todos os parceiros da Saúde. Enquanto houver estrada para andar, a OM vai cá estar. Vai continuar. E, juntos, seremos mais fortes.

 

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