MARIA DE BELÉM ROSEIRA

A POBREZA COMO INIMIGA – Considero que um dos mais graves problemas do país são os níveis de pobreza que vem apresentando, de forma continuada. Combater a pobreza de forma sistémica, transversal e integrada nas suas múltiplas dimensões será, porventura, a nossa tarefa coletiva mais urgente.

Se é certo que este fenómeno tem raízes ancestrais, não deixa de ser oportuno sublinhar que, nos tempos mais recentes, foi a instauração do regime democrático em 1974 que permitiu a sua identificação como problema grave que deveria ser objeto de políticas públicas consistentes no sentido da sua progressiva erradicação. Com efeito, durante o Estado Novo, “ser humilde e pobrezinho” até era considerado, de certa forma, uma redenção. Em traços gerais, a doutrinação expressa ou subliminar era no sentido da não estimulação da autoestima nem da adoção das atitudes que permitissem sair da ratoeira da pobreza que servia, também, um modelo económico assente em baixos salários e um regime político que assentava em pessoas conformadas com a sua sorte e, portanto, pouco reivindicativas. No programa dos três “D’s” que constituíram as palavras de ordem do regime democrático, “Democracia, Descolonização e Desenvolvimento”, a agenda política no domínio das políticas sociais preocupou-se de imediato com a luta contra a pobreza. Foram vozes fortes e audíveis de pessoas marcantes na cena política da altura, de que invoco, em representação de todas as outras, Maria de Lourdes Pintasilgo e Alfredo Bruto da Costa, que trabalharam incansavelmente no sentido de uma abordagem estruturada e multidimensional da luta contra a pobreza. Tudo isto pode ser comprovado com as ações que desenvolveram e concretizaram no terreno, com os programas que escreveram e cuja aplicação encetaram enquanto membros do Governo, com a insistente intervenção cívica que protagonizaram a nível interno e internacional, com o aprofundamento do conhecimento científico sobre este fenómeno e com a denúncia pública que lideraram da sistemática falta de vontade política para uma consistente e continuada atuação. Sendo Portugal um país sem memória e caracterizado – na altura, mais do que agora – por ciclos políticos curtos, quem chega de novo tem sempre a tentação de pensar que tudo começou consigo, o que é uma receita direta para o desastre.

POBREZA EM PORTUGAL – Num contexto desta natureza, e quase meio século volvido sobre o 25 de Abril, apesar da entrada para a, agora, União Europeia, e o impulso que esta deu ao nosso desenvolvimento social e económico, os números das pessoas pobres em Portugal e, pior do que isso, em privação severa, constituem um lastro pesado, não apenas do ponto de vista económico mas também de natureza moral! É certo que introduzimos a universalidade nos sistemas de proteção social e no acesso à educação, mas raramente os definimos como prioridade consistente e estruturante ao serviço de um bem maior que pudesse ter ficado ao abrigo das mudanças de ciclo político. Estas, sem memória e sem cultura de avaliação, tenderam sempre para desfazer o que imediatamente antes tinha sido feito. Recordo, aliás, que quando António Guterres elegeu como prioridades do seu primeiro Governo a Educação e a Luta contra a Pobreza foi insistentemente ridicularizado como se se tratasse de questões menores.

Ora, isto era tão mais necessário quanto as fragilidades que a dimensão do fenómeno provoca, tornando o país vulnerável às crises sistémicas que têm vindo a ocorrer com periodicidade cada vez mais curta, desde a crise financeira de 2008 até à crise pandémica em curso há quase dois anos. O resultado mede-se de forma crua e objetiva. Os últimos dados do inquérito às condições de vida do Instituto Nacional de Estatística (INE), realizado com base nos rendimentos de 2020 e publicado em dezembro de 2021, são reveladores da intermitência dos resultados alcançados e de como pequenas conquistas são rapidamente postas em causa. Na verdade, se a introdução do rendimento mínimo garantido nos finais dos anos 1990 foi eficaz na redução da exclusão social, grande parte dos pensionistas ainda hoje continua prisioneira de pensões construídas sem base contributiva ou em função de descontos incidentes sobre baixos salários. Por outro lado, se foi possível, com a reversão das políticas da troika, entrar num ciclo, desde 2015, de decréscimo da pobreza, já a pandemia teve como consequência a inversão dessa tendência ao evidenciar que 18,4% dos portugueses estavam abaixo da linha de pobreza, o que se traduz em mais 228 mil pessoas nessa situação.

CONSEQUÊNCIAS TRÁGICAS – As consequências desta realidade são trágicas, desde logo para as suas vítimas. Aumentou o número de trabalhadores pobres – para 11,2% –, o da pobreza infantil – de 26,1% para 31,6% –, o dos desempregados e as desigualdades agravam-se. E dentro dos grupos mais afetados, como sempre, as mulheres, as famílias monoparentais e as que vivem em agregados com baixa intensidade laboral. É preciso ter em conta que a pobreza infantil afeta o desenvolvimento cognitivo das crianças de forma irremediável. Por isso me empenhei tanto em trazer para a agenda política esta realidade tão trágica sobretudo num país em que a taxa de natalidade não pára de diminuir! Estes números são incompatíveis com a democracia de qualidade que todos pretendemos atingir porque põe em causa o exercício dos Direitos Humanos para uma grande parte da população. Não olhar, pois, para a pobreza como um problema prioritário é ser cego! É ignorar a pressão da despesa sobre a Saúde e a Segurança Social – mais doença, mais grave e com pior prognóstico, mais comorbilidades, mais mortalidade evitável, mais doença a subsidiar, mais incapacidades temporárias e definitivas, mais apoios sociais, etc., etc. Mas é também ignorar o impacto nas receitas desta realidade que, conjugada com os baixos níveis de qualificação, ao afetar diretamente a produtividade e a capacidade de produção com alto valor acrescentado, dificulta o crescimento económico. A pobreza é, pois, nossa inimiga. Ela explica a dificuldade que temos tido em acompanhar os níveis de crescimento dos nossos parceiros europeus mais próximos. Combatê-la de forma sistémica, transversal e integrada nas suas múltiplas dimensões será, porventura, a nossa tarefa coletiva mais urgente. Neste sentido, dou as boas-vindas à Estratégia de Combate à Pobreza se, desta vez, for para levar a sério como imperativo assumido de forma transversal à sociedade e às agendas políticas.

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