MARIA DE BELÉM ROSEIRA

A PRIMAVERA DO NOSSO CONTENTAMENTO?A Cimeira Social do Porto que se realizará no princípio de maio, no âmbito da Presidência Portuguesa da União Europeia (EU), elegeu como agenda o alcance de metas no domínio da Segurança Social e do Trabalho, áreas estas, entre outras, que integram a iniciativa do Pilar Europeu dos Direitos Sociais. A iniciativa do Pilar Europeu dos Direitos Sociais foi aprovada durante a presidência de Jean-Claude Junker da Comissão Europeia. Assenta em 20 princípios que pretendem sublinhar uma cultura política no projeto europeu, mais justa, inclusiva e plena de oportunidades, conferindo aos cidadãos europeus novos direitos, mais eficazes. A sua necessidade surge na sequência do devastador impacto social da crise económica e financeira de 2008 por força da qual alguns Estados-membros mais atingidos foram compelidos a executar Programas de Ajustamento extremamente duros e exigentes para cumprimento das regras da UE relativas aos indicadores económico-financeiros. Embora cada um dos países mais afetados pela crise padecesse de doenças diferentes, esses programas obedeceram ao mesmo modelo, que passava, entre outras medidas, por cortes drásticos no domínio das políticas públicas de proteção social, que o mesmo é dizer Saúde, Segurança Social, Emprego, Educação, Igualdade de Oportunidades. Esta abordagem imposta com o objetivo de alcançar a “saúde financeira” da União ignorou os deveres de solidariedade entre Estados-membros e não teve em conta o seu impacto social extremamente negativo: agravou desigualdades e fustigou, sobretudo, os cidadãos europeus mais vulneráveis, ferindo o primeiro dos princípios dos direitos fundamentais o da igual dignidade de todos os seres humanos. 

A Carta dos Direitos FundamentaisSucede que com a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, em dezembro de 2009, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia que tinha sido aprovada também em 2000 apenas como compromisso político, adquiriu efeito vinculativo. Este documento pretendeu juntar num único instrumento jurídico, os direitos civis, políticos, económicos, sociais e culturais que, a partir da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, foram sendo construídos através de fontes várias. Ao conferir-lhe vinculatividade, a UE reforçou a proteção dos cidadãos europeus no que se refere à aplicação do Direito da União. Contudo, conforme se refere no relatório publicado em 2020 pela Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia, “no plano nacional, a sensibilização para a Carta e a sua utilização têm sido limitadas”, o que levou a que uma das conclusões do Conselho de 2019 tivesse sido no sentido de os Estados-membros deverem considerar a adoção de iniciativas e políticas que visem promover a sensibilização à Carta e a sua aplicação a nível nacional, como forma de aprofundamento da cultura do respeito pelos direitos fundamentais. 

Esta matéria tem importância política central. Na verdade, o descontentamento dos cidadãos e a sua perda de esperança medem-se não só nos níveis crescentes de abstenção na participação política que têm vindo a verificar-se, enfraquecendo a democracia, como também na crescente relevância eleitoral dos partidos políticos de protesto que submetem a sufrágio programas que, em termos de perceção, vão ao encontro das expectativas dos cidadãos e são de simples apreensão, mas obrigam a uma contra-argumentação complexa para demonstrar o irrealismo de pôr em prática o que prometem e anunciam. 

A agenda da cimeira socialA Europa conhece bem, através da sua História, as consequências de um ambiente desta natureza. Ele acabou por se espalhar insidiosamente e foi o responsável pelos maiores morticínios e pelas destruições em mais larga escala que a Humanidade conheceu até hoje. Daí a importância da agenda social que protege, que cura, que reconstrói e que desenvolve de forma equilibrada. Os temas e as metas que integrarão a agenda e as conclusões da Cimeira Social já estão definidas pela Comissão. São ambiciosas e vão no sentido certo. Aquilo que não se entende é que, em plena crise pandémica, com uma Europa devastada pelas suas consequências sociais e económicas, de cujo alívio depende o sucesso da agenda referida, a Europa contrarie o enunciado objetivo de aprofundamento da cultura de direitos humanos. E fá-lo ao esquecer um outro princípio base da doutrina dos direitos Humanos: o seu carácter indivisível, interdependente e inter-relacional.  

A própria pandemia nos ensinou a importância desse princípio. O reconhecimento da urgência de abandono da cultura vertical, que continua a ser tradicional na abordagem das políticas públicas, tem cada vez mais vozes favoráveis. Ainda numa conferência realizada em fevereiro último, organizada em conjunto pelo Serviço de Investigação do Parlamento Europeu (EPRS) e pela Organização para a Cooperação Económica e Desenvolvimento (OCDE), intitulada “A nova centralidade da ciência e da tecnologia: sobreviverá ela à pandemia de corona vírus?”, o keynote speaker Andy Wyckoff (diretor para a Ciência e Tecnologia da OCDE) afirmava: “A pandemia sublinhou a importância das abordagens transdisciplinares para lidar com problemas complexos tais como a Covid-19 e as alterações climáticas. Contudo, o sistema de normas corrente e as instituições estão maladaptadas para lidar com desafios complexos perversos como estes. As estruturas por disciplina e hierárquicas necessitam de ser ajustadas para capacitar e promover a investigação transdisciplinar. Os Governos têm um papel a desempenhar para promover esse ajustamento, utilizando uma mescla de iniciativas políticas.” 

Abordagem transdisciplinar Passa-se em meu entender, precisamente com a Cimeira Social do Porto, uma situação dessa natureza no que toca às políticas sociais, em termos de investigação e atuação que deveria, por iniciativa europeia e nacional, ser convertida em transdisciplinar. Na verdade, a pandemia demonstrou como a falta de articulação entre a Saúde e a Segurança Social teve impacto na sobremortalidade dos mais vulneráveis ao vírus. Para além disso está, há muito, cientificamente demonstrada a relação entre pobreza, precariedade laboral, desemprego, falta de capacitação das pessoas e doença. Essa relação traduz-se em mais doença, doença mais grave, com pior prognóstico, mais elevada mortalidade evitável e requer um muito maior esforço e investimento por parte das estruturas de saúde para a tratarOra, referindo o 16.º princípio do Pilar Europeu dos Direitos Sociais que “todas as pessoas têm direito a aceder, em tempo útil, a cuidados de saúde de qualidade, preventivos e curativos a preços comportáveis”, não seria uma magnífica e ajustada oportunidade para incluir na agenda europeia da Cimeira objetivos de saúde a par daqueles que serão estabelecidos para as políticas de segurança social e do trabalho? Na verdade, só acrescentando ações concretas às palavras se acreditará na sinceridade da proclamação de políticas de aprofundamento do reconhecimento dos direitos fundamentais. Por outro lado, se não investirmos em políticas e atuações transdisciplinares, não resolveremos os nossos problemas sociais mais prementes. 

Portugal deveria ter uma sensibilidade acrescida a este problema. Com efeito, 40% dos portugueses são pobres antes das transferências sociais e, depois destas, cerca de 19% continuam pobres. Acresce que uma elevada percentagem destes que inclui crianças, o nosso futuro – está em risco de exclusão social. Por sua vez, o nosso país é um daqueles em que maior é o esforço privado para aceder a cuidados de saúde: cerca de 28% do total das despesas de saúde. Isso significa que muitos portugueses não conseguem aceder, em tempo útil, como definido, a cuidados de saúde, caindo no ”ciclo infernal de mais doença mais pobreza”.  

Não seria, pois, o tempo de, de forma competente e de uma vez por todas, em termos europeus e nacionais, cruzar políticas de segurança social com as de saúde e outras políticas sociais para atender aos mais vulneráveis e prevenir as fragilidades de que padecem? 

Não seria a Cimeira do Porto uma ocasião de enorme oportunidade para sublinhar uma abordagem dessa natureza e para a classificar como “boa prática” a nível nacional e europeu? 

Não seria uma ocasião excelente para exigir à União que passasse a incluir metas exequíveis nos indicadores sociais cujo não alcance por parte dos Estados-membros implicaria sanções, por exemplo, no acesso a fundos estruturais? 

Só assim se combateriam os fracassos e as ineficiências atuais e se investiria de forma inteligente e colaborativa no desenvolvimento humano e na sustentabilidade dos sistemas de proteção social. Caso contrário, continuaremos com palavras… palavras… palavras e, para nosso descontentamento, acabará por não acontecer qualquer mudança relevante que transforme em esperança a desesperança que tanto nos tem atingido enquanto comunidade. 

Para terminar, se alcançássemos o que proponho, seria uma excelente forma de comemorar mais um aniversário desta excelente revista que dá espaço à pluralidade de pontos de vista servindo assim a democracia e que aposta numa estética exigente de qualidade e bom gosto que devem constituir referencial para o bem-estar e o progresso. 

Muitos parabéns e longa vida são os meus votos, para além de um agradecimento pessoal à Ana Laia e ao Nuno Carneiro, como obreiros desta magnífica realização. 

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