A VACINAÇÃO CONTRA A Covid-19: CRITÉRIOS DEPRIORIDADE – O pesadelo em que se transformou o ano de 2020 por força do impacto da pandemia da Covid-19 conheceu uma sensação de alívio com o anúncio da aprovação de uma vacina para o combate à doença. Primeiro no Canadá e no Reino Unido, países aos quais se seguiram os Estados Unidos e, depois destes, a União Europeia.
Já muito se escreveu sobre esta vitória da Ciência e de como ela resultou de uma concertação de esforços nunca vista entre governos, centros de investigação e indústria farmacêutica. O resultado está à vista. Ela significa que muitos dos graves problemas de que padece a humanidade poderiam ser resolvidos ou controlados se investíssemos mais em atuarmos concertadamente do que em divergirmos, sobretudo naquilo que é verdadeiramente importante, como o é a luta contra a doença. Facto é que se conseguiu chegar, não apenas a uma, mas a várias vacinas, em tempo nunca visto e com um investimento nunca antes atingido também. Cabe aqui sublinhar a atuação competente e firme da União Europeia, tanto no financiamento na linha da frente da investigação como na decisão da centralização do processo de aquisição das vacinas, em nome dos países da União. Esta decisão, além de assegurar a todos o acesso às vacinas na quantidade que cada país considerou necessária para cobertura da sua população, simplifica e agiliza os complexos procedimentos de aquisição pública. Mas descobrir a vacina, registá-la junto das autoridades competentes que garantem a sua segurança, qualidade e eficácia, são apenas passos prévios relativamente àquilo que é mais urgente conseguir em situação pandémica por força de um vírus para cujo combate ainda não existe evidência construída em termos de armas terapêuticas. Ou seja: prevenir a mortalidade (protegendo as pessoas em maior risco), salvar os serviços de saúde e alcançar, o mais rapidamente possível, a imunidade de grupo.
Complexidade exige planeamento atempado – Assim sendo, numa situação de especial infecciosidade como é aquela que vivemos, a verdadeira complexidade surge com a execução do processo que permite que a vacina chegue aos seus destinatários em qualidade e segurança. E essa complexidade exige planeamento atempado em planos diversos, que vão da definição de critérios que fixem as prioridades – pois não podem ser todos vacinados ao mesmo tempo – à criação de condições logísticas em termos de transporte, definição de locais para a ministração do fármaco, o seu transporte e preparação, sistema informático dedicado que permita respeitar a posologia aprovada e a sua calendarização, recursos humanos preparados e treinados, e locais que garantam as regras de separação física em vigor e as condições mínimas de conforto, designadamente para os grupos mais vulneráveis, entre outras. Por isso, países do nosso perímetro de relacionamento, como o Reino Unido, a França, ou a Alemanha, começaram a preparar este processo com muita antecedência e com o envolvimento dos peritos e das entidades que permitissem encontrar as melhores soluções para cada um dos problemas que iam sendo sucessivamente identificados. Como de costume, entre nós, por falta de cultura de planeamento, tal não aconteceu. Perante a estupefação que publicamente começou a ser verbalizada com alguma cobertura mediática, surgiu, na reta final do ano, um plano cuja apresentação suscitou muitas apreensões. E a principal, entre todas as elas, prendeu-se com os critérios de vacinação.
Na verdade, algum tempo antes, tinha havido um sobressalto público com uma “manchete” do Expresso, na qual se dava conta dos critérios de vacinação propostos pela Comissão Técnica respetiva ao Conselho Nacional de Saúde Pública e que suscitaram uma veemente rejeição por parte dos conselheiros. Na verdade, os mais velhos não seriam grupo prioritário porque, em linhas gerais, não teriam sido incluídos nos ensaios e, consequentemente, seriam desconhecidos os efeitos sobre o seu sistema imunitário e este, estando enfraquecido por força da idade, não justificaria a vacinação.
Compromisso público para com os mais velhos – Esta notícia obrigou a declarações empolgadas por parte de vários dirigentes políticos, de compromisso público para com os mais velhos. Teria sido mais interessante, em meu entender, uma afirmação e uma pergunta simples e intuitiva até. A afirmação: a Agência Europeia do Medicamento aprovou a introdução da vacina com limitações apenas para grávidas e crianças abaixo dos 16 anos e, como tal, não caberá à Comissão Técnica introduzir outros critérios. A pergunta: como é que se poderia defender tal posição se há anos e anos a Direcção-Geral da Saúde propõe e apela insistentemente à adesão à vacinação contra a gripe pelos maiores de 65 anos e, até por se tratar de uma importante medida de saúde pública, o Estado assume os encargos com a respetiva vacinação que é gratuita para esse grupo etário? E a mensagem insistentemente transmitida é a de que é fundamental prevenir as formas mais graves de gripe e as suas complicações, designadamente pneumonias, e a vacina é um instrumento muito importante para o efeito. Então vale ou não a pena vacinar as pessoas com o sistema imunitário mais enfraquecido? O que é que é mais importante estimular? O mais forte ou o mais fraco?
Divulgação de critérios de vacinação – Ora, cerca de três semanas depois desta reunião e da notícia, e como se nada disto se tivesse passado, eis que fomos confrontados com a divulgação de critérios de vacinação em que aparecem como segundo grupo prioritário os maiores de 50 anos que tenham comorbilidades, apanhando os mais velhos não pela idade mas pela(s) doença(s) de que padeçam e, consequentemente, deixando de fora todos os omitidos como tal nos registos do sistema. Ora, verifica-se que de 2/3 da letalidade incide sobre sobre os maiores de 80 anos e, do terço restante, a maior parte sobre os maiores de 70 anos. Se é verdade que queremos defender os mais vulneráveis e prevenir o maior número possível de mortes, por que razão ficou parte deles excluída do grupo prioritário?
Foi diferente nos outros países já acima citados, que têm tradição de excelência em utilização da evidência científica na formulação das suas políticas de saúde. Optou-se pelo processo mais complexo: andar a correr atrás de informação que os centros de saúde desconhecem porque muitos portugueses a eles não conseguem recorrer ou têm subsistemas de cobertura que lhes garantem maior acessibilidade. Enfrentamos, assim, o risco de não abranger todos os que preencheriam o critério, ferindo o princípio da equidade, bem como o de violar a privacidade e a especial sensibilidade da informação de saúde.