AMEAÇAS SOCIAIS – SAÚDE, AMBIENTE E DESIGUALDADES. O ano de 2020 ficará para sempre marcado pela fatalidade da Covid-19. Mas, em meu entender e infelizmente, não ficará marcado pelo arrepiar de caminho que está na origem do seu aparecimento e de todos os males que ela provocou. Foram vários os efeitos da Covid-19, como desorientação dos sistemas de saúde e graves problemas no acesso aos mesmos, consequente dificuldade em lidar com esta doença e as doenças em geral, mais doença e incapacidade, mais morte e mais morte evitável, travagem a fundo da economia, desemprego e falências em catadupa, incerteza e falta de esperança/confiança no futuro, aprofundamento das desigualdades e recrudescimento de populismos. A origem do surgimento da doença radica nos atropelos que os humanos proporcionaram, através da adoção de modelos económicos e comportamentos destruidores dos ecossistemas que, entre outras consequências negativas, fizeram com que as barreiras entre espécies fossem quebradas. Este risco é conhecido há muito tempo e há muito tempo são conhecidas as relações entre saúde e ambiente. Apesar disso, nada se conseguiu fazer de substancial para evitar o seu agravamento a alta velocidade. Pelo contrário, os “ganhadores” com a atitude de nada mudar persistem numa política negacionista que a evidência científica e a mera postura observacional nos mostram ser falsa.
Negar o inegável – É quase incompreensível como numa época em que nunca foi tão abrangente a capacitação das pessoas, continue um número tão alargado de intervenientes a negar o inegável. Vem isto a propósito do relatório recentemente publicado pela Agência Europeia do Ambiente (8 de Setembro) em que se afirma que, só na União Europeia, se estima que mais de 20 milhões de anos de vida saudável se perdem por causa de doenças ligadas à poluição ambiental, designadamente cancro, doenças cardiovasculares, doenças pulmonares e AVC. Na apresentação do relatório, o comissário responsável pela área do Ambiente, Virginijus Sinkevicius, afirmava: “Existe uma relação clara entre o estado do ambiente e a saúde da nossa população. Todos devem compreender que se tomarmos conta do nosso planeta não estamos apenas a salvar ecossistemas mas também vidas, especialmente as daqueles que são mais vulneráveis.”
O relatório é muito contundente quando afirma que a poluição do ar é responsável pelo maior impacto na saúde, provocando 400 mil mortes prematuras por ano, e que a investigação também aponta para que, quem a ela está mais exposto, tem uma mortalidade mais elevada por Covid-19. Para além disso, as maiores vítimas, de forma desproporcionada, são as pessoas socialmente mais débeis, as mais pobres, agravando cada vez mais as suas já muito difíceis condições de vida, e de entre estas, as crianças, os mais velhos e os portadores de doenças crónicas. Percebida esta realidade, foram muito frequentes no espaço público as afirmações de que o choque provocado por esta nova doença levaria a uma alteração drástica das nossas exigências e dos nossos modelos de vida e à condenação sem retorno de hábitos e formas de encarar a nossa existência, causadoras direta ou indiretamente de todos estes males. No entanto, para o mero controlo da Covid-19 todos assistimos ao que se tem passado mal foram aliviadas as medidas de confinamento impostas por razões de saúde pública e como se reage mal à limitação do que consideramos serem as nossas liberdades.
As várias dimensões do problema – Procurando razões para isto, só posso encontrar como explicações plausíveis a “fadiga dos conselhos” provocada por um excesso de intervenção mediática dos “aconselhadores” e a falta de inteligibilidade e coerência nas mensagens construídas e das medidas aconselhadas ou impostas. Na verdade, em minha opinião, quanto a estas tem faltado uma intervenção integrada que junte as várias dimensões do problema. A nossa Administração insiste no funcionamento vertical quando tudo está relacionado e umas áreas mais do que outras. Porque o estado de saúde de uma população não depende apenas dos serviços que diretamente a ele se dedicam. Ele depende das nossas condições de vida, das habilitações, do rendimento, da qualidade do trabalho, da habitação, da alimentação, etc., o que faz apelo a uma estratégia alargada de medidas sociais, concertadas e interligadas, que combatam as desigualdades em saúde. Numa pandemia com a dimensão da que estamos a viver, o impacto em várias dimensões da nossa vida é brutal e esse impacto será sempre mais negativo relativamente a quem não tem escolhas nem saídas. A pobreza da privação extrema que tem vindo a emergir assim o diz, e a queda acentuada da produção de riqueza só atenuará esse drama se for assumido à escala da solidariedade europeia, cuja concretização urge. Mas as feridas são muitas, profundas e serão duradouras.
O primeiro indício de civilização – Num interessante artigo publicado em agosto no El País, Miguel Á. García Vega recordava a resposta dada pela antropóloga Margaret Mead à pergunta sobre qual era o primeiro indício de civilização: “um fémur humano curado descoberto numa escavação arqueológica de 15000 anos de antiguidade… porque para que uma pessoa sobrevivesse a essa fratura outros teriam tido que cuidar dela até que a fratura sarasse”.[1] E afirmava: “15000 anos depois temos um desafio semelhante mas à escala planetária. Vivemos a época do fémur partido. A maioria dos países ocidentais conseguiu aplanar a curva de contágios do vírus mas restam pelo menos três curvas que constituem o maior repto das últimas cinco décadas: a curva da emergência climática (a imensa ameaça), a da desigualdade e a da pobreza.”
Também aqui se aplica o que nos ensina A. Damásio quando afirma que lógica e razão não são suficientes, precisamos de emoção e sentimentos. Se estes faltarem, nunca conseguiremos fazer o que tem que ser feito.
[1] Tolentino Mendonça referiu-se a esta mesma resposta e sua justificação na intervenção que proferiu na sessão comemorativa do 10 de Junho, deste ano.