PERPLEXIDADE
Apesar de ter completado o curso de Direito com o mesmo conteúdo curricular do de qualquer dos meus colegas de faculdade do sexo masculino, tinha como certo, pelo simples facto de ser mulher, o estarem-me vedadas, à partida, duas saídas profissionais: a da diplomacia e a da magistratura. Ao longo do curso, também, aprendi a dimensão da menoridade das mulheres que a lei consagrava, fosse logo no Direito Constitucional através da definição do conceito de igualdade, fosse no Direito de Família e das Sucessões.
No âmbito do Direito de Família, a dimensão da inferioridade era tal que as mulheres tinham as suas obrigações e deveres definidos no contexto doméstico, matrimonial e familiar, mas nem sequer tinham capacidade para administrar os bens que levassem para o casamento ou para decidir sobre a educação dos filhos! Esta desqualificação consagrada na lei estava já desfasada do próprio contexto sociológico, no entanto constituía o modelo oficial e a hipocrisia da moral reinante vigiava para que fosse cumprido. Esta também auxiliada pela doutrinação religiosa.
Tudo mudou do ponto de vista legal com a revolução democrática e passaram já 50 anos. Mas a realidade de todos os dias mostra bem como as Mulheres ainda estão bem longe de ver reconhecido o estatuto de igualdade de direitos e de dignidade que hoje a lei nacional e internacional consagram. Os crimes de violência doméstica mostram-no à exaustão e da forma mais revoltante. Mas todos os outros indicadores, como os relativos à igualdade salarial, ao acesso a cargos de direção, seja no contexto económico ou político, ou aqueles em que o talento e as capacidades deveriam ser o fator decisivo, continuam a afirmar que pouco ainda mudou na organização social. Por isso continuam as mulheres a ser o rosto da pobreza e as que têm mais dificuldades no mercado de trabalho, seja a que nível for.
E é esta a minha grande perplexidade. Se na minha geração todo o ambiente reinante ajudava nesse sentido, porque é que hoje, apesar das profundas alterações que se verificaram, ainda estamos tão longe do reconhecimento efetivo de que todos, homens e mulheres, temos a mesma igualdade de direitos e de dignidade? A violência no namoro aí está para mostrar como se continua a reproduzir um fenómeno aviltante, mesmo entre os mais jovens.
Sabemos que o problema tem o peso de milénios de organização social num sentido diferente. Sabemos que para esse peso cultural muito contribuíram e continuam a contribuir as religiões. Ainda há dias, afirmava o grande teólogo e filósofo Padre Anselmo Borges numa das suas crónicas semanais: “A Igreja continua a ser um dos maiores esteios da sociedade patriarcal. Até inconscientemente, com a doutrina tradicional, embora esta não encontre apoio no Evangelho.”
Mas algo será necessário fazer para que as mulheres passem a ser efetivamente respeitadas enquanto agentes de parte inteira no desenvolvimento pessoal e social. Desperdiçar os seus talentos é um prejuízo incalculável! As políticas públicas atinentes não têm sido eficazes. Agravar os quadros sancionatórios aplicáveis às infrações e aos crimes pode ser um caminho mas dificilmente melhorará o panorama. Precisamos, sim, de melhor legislação, mas precisamos também de maior persuasão por parte de quem, convictamente, seja no contexto familiar, no contexto empresarial, no contexto político, no contexto das instituições públicas, em todos os contextos de expressão das nossas vivências, acredita que o respeito de uns para com os outros é a única palavra de ordem, o único comportamento que é urgente e indispensável assegurar. E isso é o mais básico que temos que passar a exigir.