MARIA DE BELÉM ROSEIRA

DEMOCRACIA, SNS E DIREITOS HUMANOS

Estamos a celebrar este ano o 45.º aniversário do SNS. O SNS, enquanto instituição e enquanto conceito, foi consagrado na Constituição de 1976 como forma de concretização do direito à proteção da Saúde, de acordo com o modelo inglês desenhado por Lord Beveridge, economista e parlamentar, membro do Partido Liberal, autor do chamado Plano Beveridge durante a Segunda Guerra Mundial que tinha como grande objetivo a libertação das pessoas da necessidade.

Foi essa a opção dos deputados constituintes por considerarem esse modelo como aquele que seria mais favorável à melhoria dos indicadores de saúde do país, que nos deixavam numa posição humilhante na comparação internacional. E assim ficou esta instituição consagrada constitucionalmente (artigo 64.º da CRP), o que significa, nos termos jurisprudenciais e doutrinais, que “quando a tarefa constitucional consiste na criação de um determinado serviço público (como acontece com o Serviço Nacional de Saúde) e ele seja efetivamente criado, então a sua existência passa a gozar de proteção constitucional”.[1]

A Lei nº 56/79, de 15 de setembro, ao criar o SNS limitou-se a dar cumprimento a uma tarefa constitucionalmente imposta ao legislador. Não é a lei em si mesma que não pode ser revogada – é apenas o SNS que não pode ser abolido, gozando os sucessivos Governos de liberdade de ação no que concerne à execução desse direito nos termos constitucionalmente estabelecidos.[2]

Assim argumentou António Arnaut em defesa da aprovação do projeto de lei por si apresentado, considerando o SNS um construtor de Liberdade.

Decorridos 50 anos sobre a implantação da Democracia, aquilo que se verifica é que o SNS constitui a sua instituição-rainha”! Na verdade, em termos de comparação internacional, nenhuma outra instituição do Portugal democrático atingiu o seu nível de desempenho. E isto apesar de todo o contexto social e económico do país puxar em sentido contrário! Refiro-me à pobreza e níveis de privação severa, às qualificações da população e nível dos seus rendimentos, bem como à evolução preocupante dos indicadores demográficos que constituem uma pressão enorme em termos de carga de doença e sua complexidade.

O SNS que previne e trata doenças, permitindo-nos cumprir o nosso projeto de vida é, pois, a peça fundamental na construção da liberdade de que hoje gozamos. Por isso é tão importante aprofundá-lo. A par da recuperação dos níveis de investimento requeridos em termos de renovação e substituição de equipamentos e políticas competentes para as profissões da saúde, que exigem planeamento e execução em termos plurianuais, requerem-se aperfeiçoamentos inadiáveis a nível dos modelos de prestação de cuidados no âmbito dos quais a transformação digital constitui prioridade inadiável.

Mas temos também que fazer dele instrumento fundamental de todos os outros desenvolvimentos que ainda nos faltam convocando-os para a tarefa, cumprindo o ditame constitucional ínsito na declinação do direito à proteção da saúde e o dever de a defender e promover no que concerne às determinantes sociais e económicas que se refletem nos anos de vida com saúde depois dos 65 anos de idade. Temos sido incapazes de trabalhar a nível de articulação intersectorial e numa perspetiva colaborativa.

Temos, pois, que mudar culturas e adotar na sua plenitude a doutrina dos Direitos Humanos (DH): universalidade, indivisibilidade, interdependência e inter-relação de todos os DH e perceber a sua importância perante as ameaças e incertezas do mundo atual.

O Relatório sobre o Desenvolvimento Humano de 2023/2024 classifica, e cito, como obra seminal desta perspetiva a obra de Amartya Sem, Desenvolvimento como Liberdade, ao reformular o desenvolvimento como a procura de “uma maior liberdade [que] aumenta a capacidade das pessoas para se ajudarem a si próprias e também para influenciarem o mundo… moldar o que se poderia chamar uma visão emancipatória do desenvolvimento, que faz brilhar a noção de Sen de desenvolvimento como liberdade no grande desafio do nosso tempo: pessoas e planeta em crise conjunta.

Esta visão do desenvolvimento centra a expansão do arbítrio na intersecção do desenvolvimento humano, dos direitos humanos e da sustentabilidade… O impasse global começa a dar lugar à cooperação, incluindo para bens públicos mundiais, mesmo quando persistem preferências diversas – e devemos esperar que persistam”.

Na verdade, e continuo a citar, “o primeiro Relatório sobre o Desenvolvimento Humano, em 1990, proclamava com orgulho que ‘as pessoas são a verdadeira riqueza de uma nação’. As pessoas continuam a sê-lo e sê-lo-ão sempre. Qual é o objetivo do desenvolvimento se não for para as pessoas?

Como afirma Daniel Innerarity, “a política precisa de desenvolver uma inteligência mais adaptativa e antecipatória das mudanças se não quiser transformar-se naquilo que já é: um lugar de reparação de danos e muito pouco de antecipação de futuros (…).


[1] Acordão do TC nº 39/84, de 11 de Abril

[2] Maria de Belém Roseira e Helena Pereira de Melo “Democracia, Saúde e Ética Social”, in “ Saúde em Portugal Pensar o Futuro”

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