AS MULHERES
Março é o mês escolhido para a celebração da Mulher e para a análise do que nos falta percorrer, enquanto sociedade, para dar pleno cumprimento ao princípio – hoje amplamente consagrado nos Estados de Direito – da liberdade e igualdade de nascimento de todos os seres humanos em direitos e dignidade pela Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), que já cumpriu o seu 75.º aniversário.
Ao longo de milénios, a organização social imposta fixou para as mulheres a intervenção no espaço privado – o do ambiente doméstico e da família – mas, mesmo aí, as decisões importantes cabiam aos homens. Partia-se do princípio que as mulheres tinham que estar ao serviço dos outros e sob orientação, eram destituídas de pensamento racional, moldadas por emoções que as transformavam em seres incapazes de tomar as decisões que importavam para a vivência individual, familiar ou coletiva. A inferioridade daí decorrente obrigava a que fossem seres subordinados à tutela masculina, que as transformava, na prática e nas vidas quotidianas, em meros objetos de que era proprietária e, como tal, definidora e controladora do seu destino.
As igrejas encarregaram-se de definir o papel da Mulher com base em fundamentação interpretativa dos Textos Sagrados e de controlar as regras de comportamento moral a que deveriam estar sujeitas. Por sua vez, o Direito encarregou-se de consagrar em lei o seu estatuto e as obrigações e proibições a que estavam sujeitas, quer na esfera pública, quer na privada. O quadro descrito não é fantasia, permanece em vigor e sujeito a disciplina feroz em muitos países do mundo.
CONSAGRAÇÃO CONSTITUCIONAL
No conjunto da História da Humanidade, podemos dizer que o contexto que hoje se vive no mundo ocidental é muito, muito recente. Especificamente em Portugal, que, voltado de costas para a Europa, só com o advento da democracia em 1974 – depois de um curto período vanguardista na I República, rapidamente interrompido – consagrou constitucionalmente a plena igualdade de direitos entre homens e mulheres e procedeu a todas as alterações do ordenamento jurídico em conformidade. Eu própria sou testemunha viva dessa realidade.
Na licenciatura em Direito que terminei em 1972, tive a oportunidade de conhecer todas as desigualdades de condição que as normas de Direito Constitucional e do Direito Público e Privado consagravam relativamente às mulheres. Completando uma formação exatamente igual à dos meus colegas homens, eu estava impedida, à partida, de exercer carreira profissional nas magistraturas e na diplomacia. Na faculdade que frequentei, a de Coimbra, não havia uma única mulher na carreira docente universitária! Isto significa que, para além da lei escrita, havia regras praticadas que arredavam as mulheres do exercício de certas profissões e/ou de certas funções.
O estudo da História do Direito demonstrava como ainda durante o século XX vigoraram regras que só podem ser classificadas de abomináveis, quer a nível do Direito da Família e do Direito Penal. Neste último, especificamente, a tipificação de alguns crimes, consoante praticados por homens ou mulheres, tinham molduras penais diferentes, mais graves para estas, naturalmente.
Como não podia deixar de ser, a Revolução Democrática – da qual celebramos este ano o 50.º aniversário – iniciou de imediato um trabalho intenso de alteração constitucional e também de alguns ramos do Direito cuja revisão era mais premente e dos quais só refiro a alteração, no Código Civil, do Direito da Família e do das Sucessões, para acabar com o que de mais gritante estes ramos consagravam na regulação social.
É importante recordar que Portugal só ratificou a DUDH em 1978, ano em que também pôde aderir ao Conselho da Europa, cuja Carta pressupõe o regime democrático, o primado da lei e a promoção e defesa dos direitos humanos.
AS CONSEQUÊNCIAS DA DESIGUALDADE
Mas tudo aquilo de que falei até agora era o que se sabia e o que se via. O importante eram as consequências da desigualdade. Essa mediam-se, verdadeiramente, nos indicadores sociais e económicos: a taxa de analfabetismo, a da pobreza, a dos indicadores de saúde, a da participação na vida económica, na vida política, etc.
As conferências mundiais que as agências da ONU foram organizando sobre o tema das desigualdades entre homens e mulheres deram-lhe uma enorme visibilidade e, como em tudo, as opiniões dividiam-se entre os negacionistas dos problemas e os apologistas da análise e das soluções preconizadas.
Mas era um caminho sem regresso porque os princípios de Justiça exigiam intervenção e a consequência das desigualdades começou a ser medida e traduzida em termos económicos, aquilo que faz mover o mundo. A agenda internacional passou, pois, a ser mais forte no sentido da imposição do caminho para a progressiva construção da igualdade, que continua, porém,longe de ser alcançada.
Para o demonstrar, considerei oportuno chamar a atenção para um documento elaborado pelo McKinsey Health Institute para a reunião deste ano do World Economic Forum, intitulado “Closingthe Women’s Health Gap: A $1 Trillion Opportunity to Improve Lives and Economies”, que vou seguir de perto. Nele se afirma que os investimentos dirigidos às desigualdades da saúde da Mulher “poderiam acrescentar anos à vida e vida aos anos e potencialmente impulsionar anualmente a economia global em cerca de 1 trilião de dólares até 2040”. (tradução minha)
Esta afirmação assenta na constatação de que as mulheres, em média, vivem mais anos que os homens, mas passam 25% desse tempo em piores condições de saúde, a maior parte deles durante a idade ativa. Reduzindo estes problemas em cerca de 2/3, acrescentar-se-iam cerca de sete dias de vida saudável a 3,9 biliões de mulheres, o que acabaria por se traduzir anualmente em vidas mais saudáveis e de melhor qualidade. Para além dos benefícios para a sociedade, permitir-lhes-ia uma participação mais ativa no mercado de trabalho, o que, por sua vez, impulsionaria a economia global no valor acima referido.
As razões da pior saúde das mulheres radica essencialmente, de acordo com os autores, em quatro aspetos: a ciência, que continua a usar e seguir um modelo masculino que ignora as diferenças biológicas das mulheres e não investe na abordagem dos seus problemas de saúde; os dados, que subestimam ou subvalorizam a condição da mulher; a prestação de cuidados, que tem mais barreiras para as mulheres; o investimento, que não é proporcional à prevalência dos problemas de saúde de que as mulheres padecem.
SAÚDE DAS MULHERES
Para este relatório, a “saúde das mulheres” é definida como as condições biológicas e as condições gerais de saúde que só afetam as mulheres ou as afetam de forma diferente ou desproporcionada, o que merece uma explicação.
É que, durante muito tempo – demasiado tempo – os problemas de saúde das mulheres eram muito focados na saúde sexual e reprodutiva. Em todos os outros aspetos que eram comuns a homens e mulheres, seguia-se o paradigma masculino. O que, aliás, ainda hoje é o padrão na formação dos profissionais de saúde. Ora, o conhecimento de que hoje dispomos permite-nos perceber que os sinais de alerta em relação a doenças muito comuns, como as cardiovasculares, por exemplo, são diferentes nos homens e nas mulheres, o que leva à desvalorização dos sinais que as mulheres dizem sentir e, consequentemente, a um atendimento mais tardio e com menor taxa de sucesso, não só em termos de capacidade como de sobrevida.
Exemplo de doenças que afetam as mulheres de forma desproporcionada são as autoimunes, as enxaquecas ou a osteoporose. Por sua vez, a doença mental e a dor, muito comuns nas mulheres, continuam subvalorizadas mas são muito incapacitantes. Quanto às doenças neurodegenerativas, as diferenças de incidência em termos de sexo são desconhecidas e insuficientemente estudadas.
Quem depois de ler este relatório poderá continuar a dizer que as desigualdades de género não existem ou são uma questão irrelevante para a sociedade?
É que os direitos humanos não são uma criação de cultores de utopias. Usufruir da sua doutrina é uma questão de exercício da liberdade e de desenvolvimento humano e social que deve ser repartido de forma justa, pois cultivá-los significa que ninguém deve ser deixado para trás.Quando estaremos preparados para o perceber e para o pôr em prática? O Global Gender Report de 2023 estima que a Europa demorará 67 anos a consegui-lo. Eu já não estarei cá!