A PROTEÇÃO SOCIAL DO SÉC. XXI
O papel dos sistemas de proteção social do século XXI terá de passar do conceito de mera proteção contra os riscos inerentes às vivências, para o de investimento no potencial de cada pessoa, que previne ou enfraquece esses mesmos riscos.
Num documento de que fui relatora, enquanto membro da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, defendi como grande recomendação que o papel dos sistemas de proteção social do século XXI tinha que ser diferente do dos séculos anteriores, passando do conceito de mera proteção contra os riscos inerentes às vivências, para o de investimento no potencial de cada pessoa, que previne ou enfraquece esses mesmos riscos.
Na verdade, esses sistemas transitaram da iniciativa e gestão cívica da proteção das pessoas contra os riscos sociais, como invalidez, morte, pobreza, doença, para a assunção da responsabilidade pelo Estado dessa mesma proteção e reparação, nos finais do século XIX, e conheceram um grande desenvolvimento ao longo do século XX, não apenas no alargamento dos benefícios como, na sequência da II Guerra Mundial, na população abrangida com a introdução do conceito da “universalidade” plasmado na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948: “todas as pessoas são iguais em direitos e dignidade”.
Evolução do papel do Estado
Este caminho traduziu-se na evolução do papel do Estado de entidade que apenas garantia os direitos civis e políticos para uma nova conceção em que àqueles acresciam os direitos sociais, sequenciais e interligados com os primeiros.
Esta evolução aconteceu sobretudo na Europa, onde o modelo de Estado Social que adotou, ao resolver ou, pelo menos, atenuar os problemas mais comuns e causadores de maiores sofrimentos e angústias às pessoas, proporcionou níveis assinaláveis de bem-estar e desenvolvimento, em várias dimensões e, a par do crescimento económico, melhorou substancialmente o nível de vida e o bem-estar das populações.
O modelo de evolução das dinâmicas da economia, contudo, alterou-se substancialmente, sobretudo a partir da globalização e subsequente deslocalização dos modelos produtivos. Na verdade, com as regras entretanto aprovadas para o comércio mundial, os investidores partiram em busca dos países onde a produção de bens e de serviços era muito mais barata pela inexistência de regras complacentes com os direitos humanos.
Este movimento veio provocar consequências profundas a vários níveis, de que apenas cito: desigualdades abissais na distribuição de rendimentos, crescimento desmesurado do poder económico e consequente enfraquecimento do poder dos Estados, amputação da autonomia estratégica dos países em termos de acesso a bens e produtos essenciais, predação inexorável da sustentabilidade ambiental e alterações geopolíticas que pressionam os delicados equilíbrios da concertação entre blocos de poder, como está à vista com a invasão da Ucrânia.
Descontentamento e fraturas sociais
Por sua vez, as agências internacionais surgidas durante o século passado, sede do multilateralismo por excelência, têm produzido os diagnósticos e as recomendações corretos, mas a sua eficácia tem ficado sempre muito aquém do desejável e do necessário. As desigualdades na distribuição da riqueza são brutais e teimam em crescer de forma desmesurada. As injustiças inaceitáveis que esta situação espelha manifestam-se em descontentamento e fraturas sociais cada vez mais profundas.
Para além dos movimentos sociais que o demonstram, este descontentamento tem vindo a exprimir-se em escolhas eleitorais que alimentam o crescimento da representatividade de partidos extremistas que prometem o que não pode ser alcançado, mas acabam por conquistar a confiança dos eleitores que, face aos insucessos dos partidos políticos tradicionais, sentem necessidade do reforço da esperança.
A esta evolução, nem as que pensávamos sólidas democracias maduras nos países do espaço da União Europeia têm sido imunes. Atingiu um nível tão profundo de fratura que dificilmente poderá ser revertido. Mas devemos esforçar-nos todos nesse sentido porque estamos a viver as consequências negativas e perigosas destas ocorrências, bem como as probabilidades do seu agravamento.
Como afirmou Angus Deaton, Prémio Nobel da Economia, na sua obra A Grande Evasão – Saúde, Riqueza e as Origens da Desigualdade, “novos conhecimentos, novas invenções e novas formas de fazer as coisas são os elementos nucleares do progresso (…) a necessidade pode ser a mãe da invenção, mas não há nada que garanta uma gravidez de sucesso. Mas, pelo menos, temos que fazer a ‘coisa certa’”.
Neste contexto, considero que o papel dos sistemas de proteção social, em termos dos seus objetivos, deve dar o seu contributo e evoluir de mera proteção estática e rotineira contra os riscos sociais para um modelo de investimento no potencial com que cada pessoa nasce.
Alteração radical
Isto implica, naturalmente, uma alteração radical nos modelos de funcionamento, com a incorporação do conhecimento científico, nas várias dimensões em que ele se exprime, das humanidades às ciências exatas, e nos novos instrumentos tecnológicos que coloca à nossa disposição e que vêm facilitar um cruzamento inteligente e personalizado de intervenção.
Amartya Sen, também ele Prémio Nobel da Economia, apontou o caminho quando teorizou sobre o “Desenvolvimento como Liberdade” e criou um novo instrumento de medida para o progresso social que acrescentou, ao nível de rendimento, os níveis de esperança de vida à nascença e os níveis de qualificação da população – os indicadores do “desenvolvimento humano”.
Na verdade, hoje sabemos que os direitos humanos, para além de universais, são indivisíveis, interdependentes e estão inter-relacionados, o que implica que também a intervenção que os sistemas de proteção social realizam tem que deixar de ser vertical para passar a ser em inter-relação e colaboração estreita, abordando as fragilidades de cada pessoa de forma personalizada para conseguir libertá-lo das circunstâncias adversas que são as suas e que não escolheu para nascer. Só assim se recupera o sentido de investimento no potencial de cada um/a, proporcionando o efeito de “elevador social” que a igualdade de oportunidades deve promover e que, por sua vez, proporciona o desenvolvimento e bem-estar individual e coletivo que deve constituir objetivo central das políticas públicas.