MARIA DE BELÉM ROSEIRA

DEIXEM-NO TRABALHAR! A alteração de titular da pasta da Saúde e o anúncio de um nome respeitadíssimo para a direção executiva do SNS veio abrir uma janela de esperança no estancar de um risco que estava perante os nossos olhos. 

Terá constituído para muitos uma surpresa inquietante, o balanço relativo à pandemia de Covid-19 no nosso país, publicado no Diário de Notícias de 26 de agosto deste ano, em artigo assinado por João Pedro Henriques.  A propsito do quase” regresso à normalidade anunciado pelo Governo no que se refere ao uso de máscaras, e recorrendo a dados do Our World in Data, aí se afirma que nos dois itens mais importantes para avaliar as consequências da pandemia – infetados e mortes – Portugal ficou pior do que a média europeia. Na verdade, só há um valor em que Portugal mostra uma situação (ligeiramente) melhor do que a da média da UE: no número total de mortos (per capita) registados desde o início da pandemia…”. 

Esta notícia, que veio contrariar o discurso oficial dominante durante a pandemia, acresceu à do excesso de mortalidade geral ocorrido em Portugal ainda não explicado, surgiu em plena disfunção das urgências de obstetrícia/ginecologia e foi temporalmente coincidente com a informação relativa ao expressivo aumento de portugueses sem médico de família, bem como ao das listas de espera. Neste contexto ficaram bem patentes as dificuldades com que o SNS se debate e a ausência de medidas de política adequadas para as ultrapassar. Com efeito, à ausência de pensamento estratégico, junta-se a evidência de uma relação tensa com as Finanças e uma expressiva incapacidade de segurar os recursos humanos no SNS, o seu ativomais precioso. 

REMÉDIO MILAGROSO – O novo Estatuto do SNS foi, então, anunciado como o remédio milagroso para todos os males. Conhecida uma versão colocada à discussão pública desde o ano passado, muitas eram as incongruências patentes. Do perímetro do SNS à sobreposição de competências com outros organismos cuja redefinição não se conhecia, ou à articulação com agentes do Estado cujo aumento de responsabilidades no campo da Saúde também fazia eco na agenda política e mediática, razão teve o Presidente da República para manifestar dúvidas e perplexidade. No momento em que escrevo este artigo desconheço a extensão em que terão sido incorporadas no diploma promulgado. 

A alteração de titular da pasta e o anúncio de um nome respeitadíssimo para a direção executiva do SNS1 veio abrir uma janela de esperança no estancar de um risco que estava perante os nossos olhos: a da degradação acelerada do SNS. Sinal expressivo destas disfunções foi a “corrida” a duplas e triplas coberturas do risco doença. Não podemos ignorar a pandemia como fator de enorme pressão sobre o SNS, mas também não podemos ignorar o discurso oficial e a política da época profundamente hostilizador do recurso a outros agentes do sistema como o setor da economia social e o setor privado. 

Na verdade, como afirmou António Arnaut, “a reforma do SNS pode ter uma componente ideológica, mas é sobretudo uma exigência ética da civilização. Não é justo que as pessoas sofram e morram por falta de assistência médica por não terem dinheiro… Quando o SNS faz as pessoas esperar meses por uma consulta, por um exame ou cirurgia às vezes urgente, deixou de ser um Serviço Nacional de Saúde.” Ora, o não poder ir ou o ter medo de ir ao SNS durante a pandemia e o não encaminhamento dos doentes de Covid e de outras patologias para outras estruturas do sistema levou a que Portugal, de acordo com números de agências internacionais, seja dos países de Europa com mais elevado nível de necessidades em saúde não satisfeitas e, ao mesmo tempo, seja daqueles em que as despesas do bolso de cada um sejam das mais elevadas. 

Estes indicadores mostram bem a prioridade que a proteção da saúde representa para as famílias portuguesas: apesar de sermos dos países com um salário médio mais baixo, opta-se pelo sacrifício da despesa de adicionar uma proteção suplementar para garantir o acesso. Só que uma forma não planeada de acesso não assegura ganhos em saúde. Hoje requer-se outra forma de atuar e há adequados instrumentos e metodologias para o conseguir. A inteligência colaborativa tem que predominar sobre a imposição de argumentos de autoridade. 

TRANSFORMAR O SNS – Mas para isso necessário será transformar o SNS. A Fundação SNS tem uma agenda em preparação nesse sentido e vai discuti-la publicamente no princípio de outubro. Inclui uma atenção especial às profissões da saúde pois nada é possível se os profissionais não estiverem envolvidos e motivados. A despolitização das nomeações cujo critério só pode ser o da competência, a dignificação do trabalho através de carreiras inteligentes que permitam desenvolver o potencial de cada um/a, e o reganhar do orgulho de pertencer ao SNS, cuja missão tem que ser clarificada e centrada nas pessoas e em modelos de prestação de cuidados integrados e ao longo do ciclo de vida, fazem parte dessa agenda. 

A atenção aos determinantes da saúde exige também o envolvimento de outras áreas da governação pois, como é próprio de todos os sistemas complexos, a interdisciplinaridade é palavra de ordem. Prioridade acentuada à promoção da saúde e prevenção da doença requer-se, pois é urgente reganhar os indicadores de saúde que fizeram o prestígio do país e empreender uma nova batalha na esperança de vida saudável depois dos 65 anos de idade. A longevidade que ganhámos não se pode escrever com multimorbilidade causadora de sofrimento humano, de disfunções familiares e sociais trágicas e de um peso financeiro que inviabiliza a incorporação da inovação.  

A escolha de Fernando Araújo para dirigir e transformar o SNS faz-me sentir uma esperança renovada. Só posso desejar-lhe as maiores felicidades e muita sorte, porque inteligência, capacidade de trabalho e provas dadas não lhe faltam! Agora, se lhe garantirem as condições prometidas, só será preciso que o deixem trabalhar! 

 

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