AGENDA DA IGUALDADE EM TEMPO DE GUERRA – Pertenço a uma geração que ainda viveu até à idade adulta com uma realidade social e política consagrada em lei que atribuía às mulheres um mero papel de subordinação às orientações e decisões masculinas, a única parte da humanidade habilitada a mandar, de acordo com a conceção dos decisores da época que se limitavam a considerar normal uma cultura ancestralmente definida.
É certo que essa era a organização social imposta e, como tal, a oficialmente defendida, mas nem sempre a praticada em ambientes familiares em que a autonomia era a regra e o respeito recíproco inquestionável. Tanto mais que o pós-Segunda Guerra Mundial fazia respirar uma mudança acelerada de conceitos e de vivências no mundo ocidental, e designadamente na Europa, que a minha geração acompanhava com interesse e entusiasmo apesar do fechamento do país. Para quem, como eu, nascida e criada numa família de mulheres com forte personalidade, escolheu cursar Direito nos idos anos 60 do século passado, o confrontar-me com uma realidade normativa que via as mulheres como seres subalternos, designadamente na forma como a Constituição em vigor definia o princípio da igualdade, ou nas obrigações que o Direito da Família lhes impunha, ou até como o Direito Comercial as discriminava negativamente, para além de outras particularidades, como a proibição do acesso a certas atividades profissionais, só poderia ter ficado fortemente motivada no sentido do inconformismo com tal realidade. Senti-me, aliás, no curso certo para, terminada a formação que ele me conferia, poder influenciar as alterações legislativas que, bebendo do espírito transformador da Declaração Universal do Direitos Humanos, consagrassem a igualdade de dignidade e de direitos de todos os seres humanos e procedessem às alterações que urgiam. Tive a felicidade de viver, logo no início da minha vida profissional, a libertação do país de um regime anacrónico, bafiento e persecutório que, qual varinha mágica, veio criar as condições para as profundas transformações políticas e sociais que se seguiram de forma intensa e acelerada. E, mais do que isso, tive a possibilidade de estar diretamente envolvida em muitas delas.
IGUALDADE DE OPORTUNIDADES
A agenda da igualdade de oportunidades entre Homens e Mulheres foi das primeiras a saltar para o espaço prioritário da política e, à aprovação da nova Constituição da República que a consagrava, rapidamente surgiram alterações legislativas estruturantes de que destaco aqui apenas três, que reputo das mais importantes: a revisão do Direito da Família e do Direito Sucessório, o direito de voto sem restrições e a igualdade no trabalho entre homens e mulheres. A realidade veio, contudo, confirmar aquilo que já se adivinhava: é que mesmo em aspetos de justiça básica que se ligam ao exercício dos direitos humanos, as mudanças no mundo real que contrariem modelos de organização social arreigados na cultura dominante demoram muito a acontecer, mesmo com a adoção de medidas que tenham como objetivo promovê-las. O conteúdo desta agenda foi-se alargando progressivamente, quer no campo da participação política, quer no combate aos estereótipos ou através da criminalização de certos comportamentos, como é o caso da violência doméstica. Mas as barreiras sociais, culturais e políticas continuam a conseguir fazer o seu caminho, explícita ou subliminarmente.
EFEITOS DA PANDEMIA
A pandemia que, entretanto, ocorreu acabou por ter tido como efeito colateral o recuo de alguns progressos alcançados. Na verdade, os confinamentos e as restrições à circulação impostos induziram maior vulnerabilidade quer à violência intramuros, quer à sobrecarga de trabalho para as mulheres, fosse nas tarefas domésticas, fosse no acompanhamento das atividades escolares dos filhos, com prejuízo para as suas responsabilidades profissionais. Verifica-se, pois, uma diminuição nos seus rendimentos, recurso indispensável à sua autonomia e mesmo à sua respeitabilidade.Só a título de exemplo, e ainda antes do efeito da pandemia, o Eurofund da Comissão Europeia afirma que a diferença salarial entre homens e mulheres era de 15,8% em 2010 e em 2019 de 14,1%. A continuarmos neste ritmo, serão precisos 70 anos para anular este diferencial.
GUERRA DA UCRÂNIA
Como se não bastasse a pandemia, somos agora confrontados com a guerra na Ucrânia. “Os rios de sangue e de lágrimas” em que ela se traduz, nas palavras expressivas do Papa Francisco, vêm retirar, aparentemente, importância relativa à problemática que tenho vindo a abordar. Só que a desigualdade de género é estrutural e manifesta-se também de forma vincada em tragédias como esta, quer em teatro de guerra, quer nos campos de refugiados ou de acolhimento. As dezenas de milhares de mulheres que estão a fugir sozinhas com as suas crianças, deixando os homens para trás, pese embora a atitude humanitária e generosa de tantas pessoas e organizações, vão fazer delas alvo fácil para toda a forma de abuso. É um clássico! Basta ler as revoltantes descrições do que se passou na Segunda Guerra Mundial, ou nos campos de refugiados, mesmo na Europa, que conflitos mais recentes têm engrossado. Considero, pois, que a forma mais adequada, hoje, de dar conteúdo ao Dia Internacional da Mulher seria o de assumir um compromisso coletivo de que a este trágico arrancar destas mulheres e destas crianças às suas famílias, às suas casas e à sua pátria, não se acrescentaria a violência monstruosa do crime de abuso sexual que contra elas se corre o risco de vir a ser cometido.