MARIA DE BELÉM

CONSEQUÊNCIAS DE UMA PANDEMIA – As consequências funestas da pandemia estarão ainda longe de ser conhecidas em toda a sua extensão e muitas demorarão muitos anos a poder ser identificadas. Mas se uma má gestão da situação pandémica livrar o mundo de governações incompetentes, poderá ter tido, ao menos, uma consequência positiva. As recentes eleições nos Estados Unidos da América (EUA) suscitariam, necessariamente, a atenção do mundo inteiro. Na verdade, o exercício do mandato presidencial ainda em curso pautou-se por uma sucessão de escândalos, fossem eles de natureza sexual, de fraude fiscal, de nepotismo ou de abuso de poder, pela perseguição aos adversários políticos e aos órgãos de comunicação social, pela utilização da mentira e pela distorção da verdade, pela sistemática tentativa de encontrar um culpado externo para o que corria mal, qual criança tirana que não aceita a reprimenda. Mas foi sobretudo o desprezo pela responsabilidade que o facto de serem a primeira economia do mundo lhes conferia, quer nas relações internacionais, quer em múltiplos dossiers de importância vital para a humanidade, da defesa e segurança à saúde, à transição digital ou à sustentabilidade ambiental, que fez sentir no exterior como uma autêntica ameaça para o mundo a possibilidade de um segundo mandato presidencial de Donald Trump. O falhanço das sondagens relativas ao resultado do anterior exercício eleitoral, em que Hillary Clinton foi derrotada por Donald Trump apesar de ter tido 3 milhões de votos a mais, chamou a atenção para a complexidade do sistema eleitoral norte-americano e para a quase impossibilidade de acerto deste instrumento de medição antecipada das preferências do eleitorado. Por esse motivo, o facto de a maioria delas apontar para uma esmagadora vitória de Joe Biden foi recebido com sentimentos contraditórios de alívio mas também de incredibilidade. E com razão, como a realidade veio a demonstrar! 

 A complexidade do escrutínio.Se alguma imagem pode traduzir aquilo que foi vivido por imensas pessoas ao longo dos longos dias de duração do complexo escrutínio, foi a de um duche escocês. Para os partidários de cada um dos candidatos, sobretudo nos últimos quatro estados cujo resultado demorou mais a apurar, a dança entre quem estava à frente, para quase logo de seguida passar para trás, transformou-se num exercício doloroso e muito angustiante até ao anúncio dos resultados quase finais. E digo “quase” porque a impugnação pelo candidato perdedor dos resultados anunciados pode atirar para decisão judicial a declaração formal do vencedor. Para quem observa do exterior, não deixa de ser surpreendente a expressiva base de apoio do ainda Presidente. Ela só é explicável apesar de todos os escândalos que marcaram o seu mandato – pela sua eficácia comunicacional, pela valorização que os norte-americanos atribuem à economia em detrimento de outros indicadores. Mas talvez, também, por um certo glamour que Donald Trump, através da mulher e das filhas, foi criando na Casa Branca, de muito mau gosto para os padrões europeus, mas, porventura, muito apreciado para certos padrões norte-americanos: exibição de riqueza e espetáculo enquanto símbolos de sucesso. A publicação The Economist, num briefing publicado na sua edição de 29 de outubro último, afirmava que “a América dificilmente se sente grande novamente. Existem menos 11 milhões de pessoas a trabalhar. Pouco mais de um terço dos alunos a frequentar a escola normalmente. A fome e a pobreza cresceram; as memórias de um verão turbulento por força dos protestos e lutas raciais estão ainda presentes. Os números oficiais apontam para a morte de 227.000 pessoas devido à Covid-19; os dados relativos ao excesso de mortalidade sugerem que o verdadeiro total vá para além dos 300.000. E quer os números de casos, quer as hospitalizações, estão a subir pela terceira vez. Em 23 de outubro a América registou cerca de 84.000 novos casos, o número diário mais elevado até agora. A má gestão da pandemia, mais do que qualquer outra coisa, parece que pode custar ao Presidente Donald Trump a sua eleição.” Parece ter tido razão nesta análise, uma vez que o tema mais longamente brandido por Joe Biden durante a sua campanha foi precisamente a vergonha que constituía para os EUA a forma como Donald Trump lidou com a pandemia, a desvalorização que fez da sua importância, o número de mortos que causou, a insensibilidade com que tratou esta tragédia humana, o desprezo que manifestou pela ciência e, sobretudo, a exibição perante o mundo da impotência e impreparação do país para lidar com um fenómeno desta dimensão, envergonhando-o. Muitas serão as análises que se realizarão até à designação formal do novo Presidente, mas a conclusão que podemos tirar é a da multiplicidade dos impactos de uma pandemia como aquela que continua a flagelar a população do mundo inteiro: sociais e económicos, é certo, mas também políticos. As eleições de outubro na Nova Zelândia deram a maioria absoluta à primeira -ministra em funções, Jacinda Ardner, um resultado considerado como quase impossível de alcançar. E uma das razões principais para o conseguir terá sido, na opinião dominante, a forma próxima, humana, determinada e competente como terá gerido a pandemia.Na Nova Zelândia, o prémio, nos Estados Unidos, a penalização. 

Respirar de alívio. Nos Estados Unidos, a penalização fez respirar de alívio todos aqueles que pugnam pelo regresso ao multilateralismo com regras nas relações internacionais, ao domínio dos valores no espaço público sobre o capricho ou os humores, ao respeito pela verdade, pela ciência e pelo conhecimento em detrimento da apologia da mentira e da ameaça como método de governação. A adulteração da qualidade da democracia na América foi alargadamente sentida como uma ameaça para o mundo e as declarações que se seguiram à vitória de J. Biden por parte dos principais responsáveis políticos aí estão para o demonstrar. Cito, pela sua importância e proximidade, as palavras de Ursula von der Leyen: 

“Felicito calorosamente Joe Biden pela sua vitória nas eleições presidenciais dos EUA e aguardo com expectativa a oportunidade de me poder encontrar com ele o mais rapidamente possível. A União Europeia e os Estados Unidos são amigos e aliados, os nossos cidadãos partilham os mais profundos laços. Juntos, construímos uma parceria transatlântica sem precedentes, enraizada na história comum e nos valores partilhados da democracia, liberdade, direitos humanos, justiça social e economia aberta. Esta parceria serviu de base à ordem internacional liberal assente em regras durante décadas e continua a ser um pilar de estabilidade, segurança e prosperidade de ambos os lados do Atlântico.” 

O promissor anúncio feito pela Pfizer em colaboração com a BioNtech da possibilidade de aprovação para breve de uma vacina que se apresenta como tendo 90% de eficácia contra a Covid-19 é uma janela de esperança para a humanidade. Apesar disso, as consequências funestas da pandemia estarão ainda longe de ser conhecidas em toda a sua extensão e muitas demorarão muitos anos a poder ser identificadas. Mas se a incompetência na sua gestão livrar o mundo de governações incompetentes, ela poderá ter tido, ao menos, uma consequência positiva. 

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