Algo se passa de profundamente errado neste país. Aliás, parece mesmo que este Portugal de buracos orçamentais, de deslizes, de milhões de euros que aparecem e desaparecem todos os dias, de restrições que se sucedem a já anunciadas restrições, de cortes cuja magnitude se afigura mais cega do que esclarecida, não é o Portugal onde vivi os últimos 30 anos. Será que o actual governo é possuído de um iluminismo súbito que descobriu um retalho de terra miserável escondido debaixo de um manto de promessa da terra prometida? Será? Será que os que estiveram antes não os continuo a ver sentados com um sorriso plasmado e uma crítica à honra ofendida, quando estão agora do outro lado da barricada parlamentar? Será que a opressão noticiosa que me esfrangalha os nervos todos os dias, com tanto prenúncio de desgraça, não continua estampada nos mesmos rostos que vejo há 20 anos interpretando papéis diferentes? Este apocalipse medíocre de uma Democracia que encerra em si, no limite, a sua própria autodestruição – as medidas ingratas não colhem votos e os votos dão vitória –, tem sido o nosso postponere fatal, mas não só… Tudo isto me trouxe à memória uma das mais enigmáticas obras de Fiódor Dostoiévski, O Crocodilo, um conto fantástico inacabado, escrito entre 1862 e 1864, uma contundente sátira à burocracia vigente na altura e à situação vivida pelo Império Russo naquela época, não muito diferente do que se passa nos nossos dias. O Crocodilo descreve-nos a odisseia de um funcionário público, Ivan Matviéitch, que queria apenas visitar com sua esposa, Ielena Ivânovna, um crocodilo em exposição e acaba engolido pelo animal, mas permanece vivo. A estória é narrada por Siemión Siemiônitch, um colega de trabalho, e os problemas surgem quando o dono do crocodilo, um alemão, se recusa a vender o crocodilo para salvar Ivan. O crocodilo, adicionado da sua carga, passa assim a ser uma atracção com novos ingredientes para o público, e a vida de Ivan, secundarizada para um plano menor. O que Dostoiévski nos traz, lido à luz de hoje, não é só a actualidade da sua crítica, mas talvez, sim, a necessidade que temos de ter um crocodilo. Que não engula necessariamente funcionários públicos, mas toda esta emaranhada teia política que se cristalizou ao longo das últimas três décadas e, quem sabe, desejavelmente, os próprios políticos. Quando Manuela Ferreira Leite falou nos “seus seis meses de necessária ditadura”, ninguém quis interpretar o sentido da metáfora e levantaram-se as estafadas vozes do costume, amarradas, mas sobretudo perigosamente escudadas, no reduto da carga simbólica de tal afirmação como o mais vil atentado à liberdade. Ninguém viu que o que preocupa hoje é que muitos e muitos começam a falar na necessidade de um “despotismo esclarecido”, não contra o povo mas contra todos os outros.