JOSÉ CARIA

PERPLEXIDADES MUNDANAS

 

O Papa abdicou e a Igreja revela que vive um acontecimento inédito. Na mesma hora da “latínica” missa em que Ratzinger revelou a sua intenção, um relâmpago cai sobre o Vaticano, revelaram mais tarde os media, os mesmos que, dias depois, mostravam os efeitos da queda de um meteorito sobre várias cidades russas, num descritivo em muito semelhante ao guião de um qualquer documentário de ficção científica. Para o comum dos mortais tudo isto nada mais representa do que uma sucessão de acontecimentos ou fenómenos que geram perplexidade e que fogem do seu quotidiano mundano. Só que, neste entretanto, outros há que geram a mesma perplexidade mas invadem perigosamente esse mesmo, agora nosso, quotidiano mundano.Vem a este propósito a mais recente missão atribuída à Autoridade Tributária e Aduaneira de fiscalizar e autuar qualquer cidadão que faça uma despesa e não peça a respetiva fatura para efeitos fiscais, mesmo que seja um cafezito. Qualquer um de nós mais desatento pensaria tratar-se de uma partida de 1 de abril, mesmo pesando os argumentos invocados de que a lei o permite e esta será mais uma forma (in?)eficaz de combater a evasão fiscal. É evidente que as reações também não se fizeram esperar e o que de mais viral e importante relevou de toda esta polémica foi uma apreciação jocosa, feita com inteligência por um ex-secretário de Estado deste Governo, no mais vernáculo sentido da linguagem com o destino a dar aos arrojados “fiscais do fisco” caso o interpelassem.Mas o que estranhamente passou no silêncio obscuro de todo este episódio, numa leitura legítima que se pode fazer, é que por esta via e abrindo precedentes semelhantes, Portugal ensaia algo que só pode ser descrito como o nascimento de uma “Nova Pide” com poderes para fiscalizar diretamente o cidadão. Se calhar valerá a pena pensar primeiro, numa versão mais moderada, em reativar a antiga polícia de costumes e obrigar, por exemplo, os fumadores a terem licença de isqueiro. Neste caso não precisamos de proteger a indústria fosforeira nacional, como desígnio com que Salazar justificava tal medida, mas sempre poderá representar alguma receita adicional a figurar nos já memoráveis memorandos da troika.Com ou sem fisco, com mais ou menos fatura, a verdade é que o Big Brother de Orwell já anda de braço dado connosco sem que disso tenhamos consciência. Hoje pode ser a Autoridade Tributária, amanhã podemos não saber quem. O poder pode rapidamente passar de uma democracia representativa para uma governação autocrática, cega e egoística, sem que disso tenhamos imediata perceção ou consciência. Por enquanto entretemo-nos no Facebook e temos a sensação de que somos livres de pensamento e ação. Por quanto tempo?