ISABEL MEIRELLES

COMIDA OU AQUECIMENTO – O próximo inverno no Reino Unido, que muito provavelmente trará mais fome e pobreza, um sistema de saúde mais debilitado e previsíveis ondas de greves, será um teste à ideologia conservadora de Liz Truss. 

Em regra, as monarquias constitucionais depositam praticamente todo o peso político nos parlamentos. Contudo, há uma série de procedimentos que se mantêm na esfera exclusiva do rei ou da rainha e, no caso de Isabel II, a sua última tarefa foi indigitar Liz Truss como primeira-ministra do Reino Unido. Liz Truss sucede, assim, a Boris Jonhson até às eleições legislativas de 2024, a última a ser recebida pela rainha e com direito a participação nas cerimónias fúnebres. 

Esperemos que este não seja um mau presságio, até porque herda uma situação extremamente difícil, no plano externo e interno, a começar pelas fraturas do seu próprio partido que tem de sarar, mas também pela calamitosa situação económica e social doméstica. A nível político, na primeira fase da eleição, foi apoiada por menos de um terço dos deputados conservadores, acabando por ser eleita como nova líder com 57,4% dos votos. Teve, assim, de nomear um elenco de ministros representativos das várias tendências do partido, muitos deles eurocéticos, mas que, em tese, lhe irão permitir a aprovação das leis do seu governo no Parlamento. 

PANORAMA INTERNO – No panorama interno, para se ter um vislumbre pálido deste, dizer apenas que as contas de energia já subiram em média 54% e espera-se que os aumentos possam chegar aos 80% até outubro, sendo que a inflação ultrapassou os 10%, em julho, pela primeira vez em 40 anos. 

O Reino Unido está à beira de uma recessão técnica no terceiro trimestre, tendo a libra caído 0,3% em relação ao dólar, com um novo mínimo desde 1985. Também o Serviço Nacional de Saúde está num estado calamitoso, com atrasos nas cirurgias, nas ambulâncias e nafalta de camas, mas apesar disto, com a recusa de Truss, ao contrário do seu antecessor Boris Jonhson, de fazer mais investimentos na Segurança Social. 

Truss segue a linha tatcheriana de um Estado pequeno e pouco interventivo na economia e, sobretudo, com impostos baixos para dinamizar a economia, mensagem que lhe valeu a vitória no Partido Conservador. 

PLANO EXTERNO – No plano externo defende implacavelmente os interessas britânicos, o que poderá influenciar as suas relações com os países europeus, nomeadamente ao nível da imigração e do Brexit, dossier que conhece bem. Apesar de não ter sido uma apoiante da saída do Reino Unido da União Europeia, é uma das responsáveis pelo plano de alteração unilateral do Protocolo da Irlanda do Norte, o que pode conduzir as partes a uma guerra comercial. 

Acresce a situação na Ucrânia e as consequências do conflito, sem fim à vista, para além da recente tensão, a propósito de Taiwan, entre os Estados Unidos e a China. A questão de um milhão de dólares é saber como vai Liz Truss governar para todos num país que é o segundo mais desigual do G7, no que toca à distribuição salarial, apenas acima dos Estados Unidos. 

Sem o carisma de Tatcher que tem como modelo é, contudo, uma sobrevivente dos governos conservadores dos últimos 12 anos, tendo ocupado os cargos de ministra da Justiça, Finanças, Comércio Internacional e, mais recentemente, do Exterior, o que não é coisa pouca porque o partido já mostrou como trata politicamente os ministros fracassados como Theresa May ou Boris Johnson. 

OPINIÕES E CRENÇAS – Porém Truss tem opiniões e crenças bastante fortes. Economia é o seu lema e as preocupações com o meio ambiente não têm para ela relevância, bem como as questões sobre a reforma do mercado de energia, considerando que basta garantir mais oferta no mercado, liberando dezenas de novas concessões para a produção de petróleo e gás no mar do Norte. 

Os cortes de impostos garantiriam que “as pessoas tivessem mais dinheiro no bolso”. No entanto, isso não ajuda as classes mais baixas e desmunidas, que lutam agora para pagar as crescentes contas de gás e eletricidade. No país há o temor de que, no próximo inverno, muitos britânicos terão que escolher entre aquecer as casas ou comer, mesmo assim Truss afirma que não acredita em “presentes” do Estado. O próximo inverno no Reino Unido que muito provavelmente trará mais fome e pobreza, um sistema de saúde mais debilitado e previsíveis ondas de greves, será um teste à sua ideologia conservadora. 

Assim, será algo de aliciante de seguir no seu mandato: o choque entre a realidade nua e crua e as crenças sobre o mercado livre de Liz Truss. 

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