A SAGA DAS DUAS IRLANDAS – Michelle O’Neill, vice-presidente e candidata a primeira-ministra pelo Sinn Féin, o antigo braço político do IRA (Exército Republicano Irlandês), agora partido nacionalista, venceu as eleições para a Assembleia, com uma vitória histórica de 29% dos votos, pela primeira vez em 101 anos, desde a participação da Irlanda, em 1921, tendo ganho o direito a nomear o primeiro-ministro, numa eleição classificada como sísmica.
A afirmação do começo de uma “nova era” por Michelle O’Neill refere-se, nomeadamente, à intenção de proceder nos próximos cinco anos a um referendo tendo em vista a reunificação com a República da Irlanda. Conta, porém, com a oposição do DUP – Partido Unionista Democrático, que venceu as eleições de 2003, de 2007, de 2011, de 2016 e de 2017, e que obteve agora 21,3% dos votos, tendo elegido 25 deputados. Este partido já fez saber que só vai nomear o seu vice-primeiro-ministro a que tem direito quando a questão do Protocolo que continua a envenenar as relações entre a União Europeia e o Reino Unido, mas também entre as duas Irlandas, for resolvida. Recorde-se que estes territórios foram palco de uma uma violente guerra civil, disputada por católicos republicanos e protestantes unionistas, entre a década de 1960 e o final dos anos 1990, que matou mais de 3500 pessoas, e cujo sistema político, consagrado em 1988 no Acordo de Sexta-Feira Santa, foi concebido para integrar as duas comunidades no poder executivo.
O Protocolo faz parte do acordo de saída do Reino Unido da União Europeia, define o sistema regulatório aplicável à entrada de produtos na Irlanda do Norte vindos de Inglaterra, do País de Gales e da Escócia e cria uma espécie de fronteira aduaneira ao longo do mar da Irlanda. Para o DUP, que quer manter a ligação com Londres,esta solução é inaceitável e rejeita fazer parte do governo dos nacionalistas do Sinn Féin, que defendem a união das Irlandas, considerando que o Protocolo põe em causa a integridade territorial do Reino Unido, exigindo que este seja revogado.
Protocolo da Irlanda do Norte
Londres quer, assim, renegociar o Protocolo da Irlanda do Norte, que foi acordado para evitar uma fronteira física entre as duas Irlandas. Contudo, a Comissão Europeia invoca, e bem, que se trata de um acordo internacional assinado pela União Europeia e pelo Reino Unido, pelo que modificações unilaterais que contradigam este acordo não são possíveis. A União Europeia afirma que só está disponível para fazer ajustamentos e identificar soluções comuns, mas sempre nos termos deste Protocolo.
Também Boris Johnson, no meio do cataclismo atual da guerra entre a Rússia e a Ucrânia, não quer comprar outra guerra com os seus antigos parceiros da União Europeia, mas também quer governabilidade na Irlanda, onde o DUP – Partido Unionista Democrático tem uma palavra fundamental, porque de bloqueio. Nesse sentido vai igualmente a ministra dos Negócios Estrangeiros Liz Truss, que declara apenas pretender eliminar barreiras menores ao comércio, sempre no espírito e âmbito do Protocolo. Este conferiu à Irlanda do Norte um estatuto especial, nomeadamente sobre produtos alimentares, o que implica burocracia e controlos maiores.
Problemas a corrigir estão, fundamentalmente, nas áreas da livre circulação de mercadorias, nas ajudas estatais e no IVA. Uma das medidas previstas visa estabelecer uma via verde para as mercadorias que circulam no âmbito do mercado interno do Reino Unido, para que sejam libertas de controlos e burocracia desnecessária. Já as mercadorias que passem pelo Reino Unido com destino ao mercado europeu seriam sujeitas aos controlos completos previstos no Protocolo.
Desejo de reunificação
Estas eleições, para além da aplicação do Protocolo, também irão trazer a antiga questão da reunificação das duas Irlandas. Com efeito, no início de 2020, foi feita pelo The Times uma pesquisa que conclui que os irlandeses têm um forte desejo de reunificação.Mais de 40% das pessoas que participaram desta pesquisa afirmaram querer uma Irlanda unida já na próxima década, enquanto outros 19% pretendem que a reunificação seja feita apenas nos próximos 20 anos. Para isso, contudo, seria necessário que houvesse um referendo, o qual, no caso da Irlanda do Norte, apenas pode ser feito se autorizado pelo governo britânico, o que, por ora, parece manifestamente improvável.
Estas eleições na Irlanda do Norte trouxeram consigo vários fantasmas, como a questão da sua governabilidade, a questão da aplicação do Protocolo pós-Brexit negociado com a União Europeia e, finalmente, o magno problema da sua reunificação com a República da Irlanda.