A DERIVA CONSTITUCIONAL DA HUNGRIA
Como se não bastasse a crise da zona euro, eis que se junta um novo país com outra crise, desta feita política, mas nem por isso menos negligenciável. Trata-se da Hungria, que, embora não pertencendo à zona euro, está a pôr em causa as fundações e fundamentos essenciais da União Europeia baseados nos respetivos tratados que preveem, nomeadamente, o respeito pelas diferenças de opinião, de crença, religião e orientação sexual. Com efeito a Hungria aprovou uma nova Constituição que tem todos os ingredientes para ameaçar este ex-líbris europeu. Assim, esta nova Lei Fundamental estabelece a punição retroativa pelos “crimes comunistas”, sendo criminalizado o principal partido da oposição de esquerda, referindo, explicitamente, que o casamento só pode ser celebrado entre um homem e uma mulher e proibindo-se, igualmente, o aborto. Contudo, no essencial, o que está em causa é a concentração excessiva de poderes nas mãos do executivo liderado por Viktor Orban e da União Cívica Húngara – Fidez, partido que dirige, pertencente à direita nacionalista. A nova Lei Fundamental adoptou uma série de medidas que reduzem a representação dos pequenos partidos e em que o Tribunal Constitucional e o Banco Central nacional são domesticados pelo Governo, mesmo contra todas as recomendações da União Europeia. A independência e os direitos individuais passam a estar fortemente limitados, designadamente em termos de liberdade de imprensa. Os órgãos de informação, por exemplo, passam a estar sob o controlo direto do poder político e os jornalistas que se mostrem contrários ao status quo podem mesmo ser despedidos ou reformados compulsivamente. Também os grupos religiosos não escapam ao ferrete constitucional, quando neste texto se faz uma menção explícita que refere, e cito, “Deus abençoa os Húngaros”. Para sumariar toda a problemática, o chefe de Estado húngaro afirmou eloquentemente: “a nossa lei fundamental define a família, a ordem, o lar, o trabalho e a saúde como os aspectos mais importantes da escala de valores que partilhamos”. Claro que esta situação está a levantar os maiores protestos, para já, a nível interno, por parte da oposição que não quer ver esta marca de extremismo de direita invadir o seu país. Quando julgávamos que Berlusconi já tinha feito tudo em termos de manipulação e controlo na Itália, eis que surge uma situação de um país a quem, recentemente, a Moody’s e a Standard & Poor’s baixaram o rating para o nível de “lixo” e que, ainda por cima, vai entrar em recessão este ano. Porém, a questão fundamental aqui é que nada nesta Constituição se compagina com os valores ínsitos nos tratados e na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, de que a própria Hungria é signatária, porque existe, ironicamente, por via legal, uma concentração excessiva de poderes nas mãos do executivo liderado por Viktor Orban e do seu partido. Pode suceder que, se o texto constitucional passar a ser aplicado, na prática, de forma reiterada, violando direitos fundamentais, a consequência seja a imposição de sanções pela União Europeia a este país, que passam, designadamente, pela suspensão do seu direito de voto, quer no Conselho de Ministros quer no Conselho Europeu. A situação económica e financeira é propícia ao avanço destas ideologias de “Deus, Pátria e Família”, que já em tempos recentes desembocaram numa guerra mundial e mesmo num genocídio que foi a vergonha do mundo e que a criação deste projeto europeu visou banir. São demasiadas variáveis para que a chama sagrada da União continue acesa, pelo que, cada um de nós, mesmo na nossa insignificância, tem o dever, no seu espaço de intervenção, grande ou pequeno, de impedir que ela se apague, sob pena de nos perdermos todos, de novo, no caminho ínvio das trevas.