AS ORDENS PROFISSIONAIS E O PARLAMENTO
As Ordens profissionais (Advogados, Médicos, Engenheiros, etc.) têm por missão principal a autorregulação das profissões que representam, nas vertentes técnica, deontológica e ética.
Qualquer um dos profissionais que integre a respetiva Ordem profissional pratica os atos próprios da sua profissão e toma decisões em relação a estes que dependem exclusivamente do seu saber e consciência ética, os quais não podem estar subordinados a nenhum poder externo. Ou seja, mesmo que um médico seja funcionário de um hospital, a administração não pode intervir minimamente no sentido de alterar as suas decisões clínicas. Do mesmo modo a administração de uma empresa não pode ordenar a um advogado seu colaborador que elabore pareceres que vão contra as leges artis do Direito, e um engenheiro não pode ser obrigado pela empresa onde trabalha a infringir as boas regras da profissão, etc.
Por isso são profissões liberais. Não porque trabalhem por conta própria. Liberais, sim, porque são livres. Livres de escolher e aplicar as melhores soluções aos problemas que têm de resolver sem admitir a interferência de ninguém. Por isso essas profissões têm obrigatoriamente de se autorregular. Para que os pares, únicos habilitados para isso, possam de forma organizada e em total liberdade, sem tutelas de qualquer tipo, controlar a formação dos seus inscritos, avaliar a sua prática e julgar ou punir actos controversos praticados por profissionais seus iguais. Por isso as Ordens têm obrigatoriamente de ser totalmente independentes do poder político.
Independência respeitada
A esse propósito refira-se que, desde a sua constituição e até agora, mesmo durante a ditadura, não houve nenhuma interferência na independência destes organismos profissionais os quais, aliás, constituíram muitas vezes um espaço de luta pelos direitos, liberdades e garantias, como foi o caso da Ordem dos Advogados, sempre presente na defesa dos seus advogados e dos presos políticos, quando estava em causa a liberdade de advogados presos pela PIDE ou a injustiça de medidas de segurança, determinadas pelos Tribunais Plenários que tornavam as penas indeterminadas e sem limite. Ou a contribuição da Ordem dos Médicos com a publicação em 1961 do célebre Relatório das Carreiras Médicas, criticando o modelo assistencial do salazarismo e apontando para um futuro Serviço Nacional de Saúde.
Proteger o cidadão
As Ordens, ao contrário do que alguns comentadores, e não só, pretendem fazer crer, não são associações eivadas de corporativismo, cuja primeira e principal preocupação é a defesa dos associados. Bem pelo contrário. A principal razão da sua existência é a defesa do cidadão, protegendo-o de falsos profissionais ou de profissionais impreparados ou negligentes. Para tal impõem uma formação pós-graduada adequada que garanta que os seus membros têm a preparação necessária ao cabal exercício da profissão. Para tal, também lhes compete uma diligente vigilância sobre o modo como os seus associados exercem a sua profissão, quer em relação às leges artis, quer em relação ao seu comportamento ético e deontológico. São, pois, essenciais à proteção do cidadão, defendendo-o não só da má prática dos seus filiados, como inclusive protegendo-o contra os erros e abusos do próprio Estado.
Daí muitas vezes os bastonários das diversas Ordens se verem obrigados a levantar a voz para apontarem os erros cometidos ou nunca corrigidos na sociedade portuguesa e que lesam ou vão lesar os cidadãos na sua saúde, na sua liberdade ou que configuram atropelo aos direitos humanos. É óbvio que tal tipo de intervenção é incómodo para o poder constituído, seja ele qual for. No entanto, qualquer governante esclarecido deveria sentir-se grato por tais reparos ou críticas. É não só a democracia a funcionar no saudável direito ao exercício de crítica livre, como tais reparos lhe permitirão tomar conhecimento e corrigir o que deve ser corrigido a bem de todos.
Estas são as principais funções das Ordens e só podem ser exercidas cabalmente se o forem em plena independência. Doutro modo, por pequena que seja a interferência do Estado na sua organização, o resultado será sempre duvidoso, senão mesmo desastroso, e as decisões tomadas serão sempre suspeitas de terem sido influenciadas por estranhos à profissão que têm como primeiro móbil da sua ação as indicações de quem os nomeou para tal. Aliás, a este propósito e para que não fiquem dúvidas, as Ordens não vivem em alegre autogestão. Têm que cumprir rigorosamente as leis do país, podem ser investigadas pela Inspeção-Geral da Saúde e auditadas pelo Tribunal de Contas, e qualquer decisão disciplinar das mesmas é passível de recurso para os Tribunais Administrativos.
Lei aprovada
Subitamente, porém, por razões que a razão não conhece, surge a interferência. O Parlamento, no seguimento de uma proposta do Partido Socialista, faz aprovar na generalidade uma lei que condiciona e amarra as Ordens: todos os seus órgãos passarão a incluir representantes estranhos à profissão, nomeados pelo poder em exercício, os quais passarão a ter acesso, por exemplo, a informação que está protegida pelo segredo profissional. Mais: propõe-se a criação de um Provedor do Cliente com poderes muitíssimo alargados, o qual é escolhido pelas Ordens entre três nomes indicados pelo Governo e terá de ser remunerado com o dinheiro das quotas pagas pelos associados.
Não percebo, não atinjo a razão de ser da utilidade desta lei que diminui o papel social das Ordens e coarta a independência e a liberdade de organismos tão essenciais ao funcionamento harmónico e seguro da nossa sociedade. Muito menos posso entender que a mesma tenha origem num partido conhecido como um dos grandes defensores da liberdade. Nem aceito desculpas de que seria resultante duma imposição da troika ou que o PRR depende desta reforma. Na Europa, exceptuando as raras Ordens que desde a sua fundação tiveram nos seus conselhos gerais um estranho à profissão, todas as outras não alteraram minimamente a sua posição de liberdade e total independência.
Esperemos que o bom senso impere, se esta lei for apreciada na especialidade pelos futuros deputados da Assembleia da República.