FERNANDO SANTO

TRANSFORMAÇÃO DE TERRENOS RÚSTICOS EM URBANOS – A POLÉMICA

A crise da habitação levou o anterior Governo a publicar o Decreto-Lei n.º 10/2024, de 8 de janeiro, que procedeu à reforma e simplificação dos licenciamentos no âmbito do urbanismo, ordenamento do território e indústria, aditando ao Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial o procedimento simplificado de reclassificação dos solos.

De acordo com os artigos 72.º-A e 72.º-B do DL 10/2024, os municípios podem determinar a reclassificação do solo rústico para urbano, com a categoria de espaço de atividades económicas, através do procedimento previsto, quando, cumulativamente: “a) O solo se destine à instalação de atividades industriais, de armazenagem ou logística e serviços de apoio, ou a portos secos; b) O espaço não se localize em áreas sensíveis, na Reserva Ecológica Nacional ou na Reserva Agrícola Nacional”. A proposta de reclassificação é elaborada pela câmara municipal.

O atual Governo aprovou uma Nova Estratégia para a Habitação, inserida no Programa “Construir Portugal”, no qual assumiu como principal objetivo a promoção de habitação pública a preços acessíveis, o que pressupõe custos controlados para permitir preços de venda mais reduzidos face ao atual mercado.

Recentemente aprovou o Projeto de Decreto-Lei que manteve a mesma opção política de transformação do terreno rústico em urbano, mas ampliando essa opção, propondo: (a) um procedimento especial de reclassificação de solo rústico para urbano com fins habitacionais; b) a flexibilização de critérios do procedimento normal de reclassificação e c) modificação do regime das alterações simplificadas aos Planos Diretores Municipais (PDM). São diversas as alterações introduzidas no DL 10/2024, que podem vir a ser melhoradas, mas a opção base está, na minha opinião, correta para dar resposta à crise da habitação.

Mas, bastou o anúncio do projeto legislativo para um grupo de cidadãos, dito de esquerda, urbanistas, e outros, unirem esforços para atacar a proposta legislativa. Gostaria de ter visto o mesmo empenhamento durante os últimos nove anos, com soluções credíveis, perante a crescente crise da habitação, com custos de produção cada vez mais elevados, com reduzida produção e oferta de arrendamento, o que levou a preços inacessíveis para o rendimento das famílias.

A RAN e a REN

Estamos a viver um tempo em que as medidas tomadas são boas ou más em função da cor política de quem as propõe, em vez de uma análise ponderada, isenta e crítica sobre o seu contributo para minimizar um problema.

Uma coisa é a discussão sobre algumas disposições ponderando as vantagens e inconvenientes, outra bem diferente é o conservadorismo das posições que defendem as áreas classificadas como Reserva Agrícola Nacional (RAN), criada em 1982, e Reserva Ecológica Nacional (REN), criada em 1982, ignorando a necessidade de rever a classificação em zonas específicas, tendo em conta as dinâmicas da sociedade. Também defendo a RAN e a REN, mas não como espaços sagrados que não podem ser questionados.

Gostava também de ver o mesmo empenhamento relativamente à defesa da floresta, que ano após ano vai ardendo, como gostava de ver soluções perante o abandono de terrenos rústicos por não ser viável a sua exploração. Não é suficiente demarcar o território se não houver a capacidade de o tratar e colocar ao serviço do desenvolvimento sustentável do país. Apesar da dimensão da floresta em Portugal, as licenciaturas em engenharia florestal têm dificuldade em recrutar alunos, o que também diz muito sobre a gestão do território.

Diferentes visões e interesses

É no justo equilíbrio e diálogo entre as diferentes visões e interesses que deve resultar a gestão do território e cabe ao poder político legislar nesse sentido.

A crise da habitação é um problema nacional, e os fatores que mais contribuem para a estrutura de custo de uma habitação são: i) o terreno; (ii) a construção; (iii) os impostos; (iv) a burocracia e (v) os encargos financeiros.

Por razões diversas, há uma evidente dificuldade de acesso a terrenos disponíveis para construção, a que acresce a complexidade e morosidade do licenciamento, que obriga a diversos pareceres, a dificuldade das obras de urbanização, também dependentes das empresas fornecedoras desses serviços, que se comportam como um Estado dentro do Estado, até à dificuldade da sua receção pelos municípios. Por isso, ter um lote para construção é semelhante a um bem de luxo e os terrenos disponíveis têm vindo a atingir preços inacessíveis.

É evidente que esta dificuldade e valorização do que existe no mercado não é igual em todo o território e depende muito da pressão urbanística (procura), dos limites urbanos e da classificação do solo.

Solo rústico e solo urbano

O PDM classifica o solo, regulamenta o seu aproveitamento, fixa o uso e, quando admissível, a edificabilidade, assentando na distinção entre solo rústico e solo urbano.

Neste sentido, os PDM, pela sua rigidez temporal e congelamento das regras que não acompanham as dinâmicas sociais e de desenvolvimento, acabam, na prática, por ser percebidos como Planos de Distribuição de Massa Monetária em função da classificação administrativa do uso do solo e dos índices de construção fixados. É nessa classificação que está a perceção da distribuição de riqueza. Na mesma rua ou entre terrenos contíguos há índices de construção atribuídos que são muito superiores aos vizinhos e se os terrenos confinantes estiverem classificados como rústicos, REN ou RAN, então o seu valor tende para zero.

O que deve ser assegurada é a expansão controlada e ponderada das zonas urbanas, com critérios que minimizem a injustiça anteriormente referida, com simplificação do licenciamento, o que permitirá aumentar a oferta a preços mais baixos e a concorrência, o que é essencial para a reduzir os custos de produção de habitação.

Como tenho afirmado, o problema do acesso à habitação está na redução dos custos de produção, desde o terreno. No atual contexto e sem qualquer margem de lucro, o custo direto de uma habitação é inacessível para a maioria das famílias. Ora, se os preços da construção nova e da reabilitação são muito elevados, as habitações existentes ficam também valorizadas, incluindo o valor das rendas.

Quando passarmos a tratar os problemas com as soluções adequadas, em vez de escolher as mais convenientes para as ideologias, talvez possamos responder aos problemas de quem necessita, como aconteceu noutras épocas.

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