FERNANDO SANTO

OS PROBLEMAS DE FUNDO DA CRISE DA HABITAÇÃO 

Algo está a correr mal para o regime não perceber que é preciso mudar profundamente o que não serve para resolver os problemas dos portugueses. 

 O primeiro Presidente da República eleito após a Revolução de 1974, General Ramalho Eanes, afirmou numa entrevista recente que “gostaria de dizer aos portugueses que é muito importante que se debrucem sobre o 25 de Abril, que façam uma reflexão sobre aquilo que se conseguiu, mas acho que é mais importante ainda fazerem uma reflexão daquilo que querem que venha a ser o país, uma reflexão que lhes permita ver o que é necessário para que tenhamos um presente melhor”. 

É uma recomendação bem oportuna e sábia, pois um regime ou uma organização que não consiga analisar o que fez de bom, reconhecer as razões do que está mal e introduzir as mudanças necessárias para satisfazer as necessidades de um povo, estará condenado. 

No que se refere à crise da habitação, o que se tem passado nos últimos 20 anos deveria merecer essa análise, independente, e não condicionada por visões ideológicas e partidárias. O nível a que se chegou tem levado à negação das evidências e a posições completamente antagónicas, consoante os partidos estão no Governo ou na oposição. Há a perceção de que alguns partidos estão mais interessados em ter o poder do que introduzir reformas e roturas com as regras e os procedimentos que não servem. 

A propósito da comemoração dos 50 anos do 25 de Abril de 1974, é oportuno recordar que a grave crise da habitação então vivida, com a carência de habitação estimada em 500 mil fogos, foi resolvida nos 25 anos seguintes. Foi resolvida com políticas, pragmatismo e com a capacidade e as competências das organizações públicas, dos seus quadros, bem preparados, e com as empresas privadas de projeto e construção. Esta capacidade não nasceu no dia 25 de abril de 1974, mas foi sendo construída antes, pelo que há que reconhecer esse trabalho de grande visão e mérito que permitiu o ambiente favorável ao que se fez posteriormente. 

 Medidas legislativas 

Podemos afirmar que a produção legislativa do final dos anos 1960 e as organizações então criadas e dedicadas à habitação foram a grande Escola que permitiu os sucessos das décadas seguintes, como foi a sua destruição e a falta de estratégia e planeamento que levou ao insucesso das últimas décadas. 

Perante a crise de habitação gerada nos anos 1960, o regime de então definiu um conjunto de medidas legislativas e criou organizações públicas com meios para a solução. Era um tempo em que a legislação era concebida pelos técnicos e políticos que sabiam dos temas, ao contrário do que tem sucedido.  

Recordo o Regulamento Geral de Edificações Urbanas (RGEU) de 1951, que criou as licenças de utilização e todo o quadro legal da edificação que ainda hoje está parcialmente em vigor. Foi sendo alterado, mas só ao fim de 72 anospassou a ser possível acabar com a obrigatoriedade dos bidés, o que é, no mínimo, ridículo. Temos de reconhecer que os diplomas mais perenes e com menos alterações, muitos dos quais ainda em vigor, foram criados nesse tempo e é justo perguntar porquê. 

A atribuição aos municípios do poder de aprovar loteamentos é de 1965, antes da Lei de Solos. O regime de revisão de preços de empreitadas de obras públicas é de 1967 e ainda se mantém com a estrutura inicial. O regime jurídico de empreitadas de obras públicas é de 1969 e só foi revogado em 2009 pelo desadequado e inaceitável Código dos Contratos Públicos (CCP), que em 15 anos já conheceu 20 alterações e continua a não servir. O que se alterou foi para pior, pois durante 40 anos o regime inicial foi sendo melhorado e adaptado às regras da UE, merecendo um grande consenso. A grande reforma do licenciamento urbano é de 1970 (Decreto-Lei 166/70) e a sua conceção foi mantida até ao atual Simplex, de janeiro de 2024, que já criou mais problemas do que soluções. A qualificação dos técnicos que podem subscrever projetos é de 1973, Decreto 73/73, que só foi alterado em 2009. 

Sendo este apenas um breve exemplo do quadro legal que até hoje serviu de referência, no que se refere às organizações públicas passámos de organismos com elevadas competências e capacidade de execução para uma sombra do que foi essa Escola. 

Em 1969 foi criado o Fundo de Fomento de Habitação que chegou a ter mil funcionários, entre os quais os melhores técnicos que sabiam de habitação, a par do Laboratório Nacional de Engenharia Civil. À época, muitos dos melhores quadros técnicos trabalhavam no Estado e eram bem remunerados face à iniciativa privada. Estes organismos e os seus quadros foram indispensáveis para o sucesso das políticas de habitação até final do século passado. 

Realidade atual 

Hoje não temos organismos públicos ao nível do que já tivemos, nem técnicos com competências e experiência na administração pública. As carreiras técnicas desta área foram diluídas na vala comum da função pública, com salários que impedem a atração de engenheiros, arquitetos, economistas e gestores. O que se está a passar no SNS com os médicos, ou no Ensino, com os professores, é apenas a consequência do que já sucedeu com outras profissões qualificadas há anos atrás, só que ninguém quis saber porque não era tão visível como a saúde. 

A produção legislativa é cada vez mais afastada da realidade e produzida por quem não sabe dos setores, começando por muitos académicos que só conhecem a teoria do que estudaram. Algo está a correr mal para o regime não perceber que é preciso mudar profundamente o que não serve para resolver os problemas dos portugueses. O que sucedeu nos últimos 15 anos foi o desastre que gerou uma nova e difícil crise. 

É urgente dotar os serviços públicos com carreiras profissionais que atraiam os mais qualificados. É preciso alterar um conjunto de exigências que obrigam a custos de construção inacessíveis. As regras aplicadas a residências de idosos e de estudantes não são aceitáveis, pois os custos, sem qualquer lucro, estão desajustados dos rendimentos. 

É preciso estimular a capacidade do setor da construção e voltar a um regime de contratação pública que permita atingir em tempo, qualidade e preço o que o CCP não consegue. É tempo de mudar para melhor o que nos fez chegar aqui, e para isso é preciso que os intervenientes sejam dos setores em vez dos “especialistas” inventados nos últimos anos. 

Quando se fizer o balanço do que irá ser a baixa taxa de execução do PRR, veremos que uma parte desse insucesso resulta do que acabei de referir. Foram atribuídas verbas, mas a incapacidade de se concretizar foi destruída, e umaparte por imposição da mesma entidade que agora as atribuiu. 

 

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