A NOVA LEI DO LICENCIAMENTO URBANO (SIMPLEX)
FACILITE AGORA E SUPORTE OS RISCOS DEPOIS
O sistema de licenciamento urbano constitui um dos maiores entraves ao investimento para produção e reabilitação de edifícios, consequência da aplicação de milhares de disposições legais, algumas das quais com diferentes interpretações técnicas e jurídicas.
A grande reforma do licenciamento urbano ocorreu em 1970, com o Decreto-Lei 166/70, de 15 de abril, o qual rompeu com a obrigatoriedade de as câmaras municipais verificarem os projetos, passando a sua ação a estar limitada à verificação “da inserção no ambiente urbanístico, à cércea, à sua conformidade com o plano ou anteplano de urbanização e respetivo regulamento”.
Os autores dos projetos reconhecidos pelas associações profissionais passaram a ser responsáveis pelo cumprimento das normas e regulamentos em vigor. Durante os últimos 50 anos o que era simples complicou-se, pois são mais de 1700 os diplomas legais e regulamentares aplicáveis ao projeto e à construção, segundo o Sistema de Informação da Legislação de Urbanismo e Construção (SILUC), a plataforma eletrónica oficial que disponibiliza esta informação.
A reforma que se justificava era rever e simplificar o monstro legislativo produzido, que passou a transformar um processo de licenciamento numa discussão sobre interpretações técnicas e jurídicas dos diplomas nacionais e dos 308 diferentes planos diretores municipais e regulamentos dos municípios.
A dificuldade começa na introdução dos projetos nas plataformas de cada município para licenciamento, pois não são compatíveis, e cada município tem a sua, o que diz muito sobre a apregoada transformação digital. Tudo isto cria mercados protegidos para gestão da ciência oculta.
O milagre do Decreto-Lei 10/2024
Perante este problema e a grave crise da habitação, o Governo publicou o Decreto-Lei n.º 10/2024, de 8 de janeiro, para reformar e simplificar os licenciamentos no âmbito do urbanismo, ordenamento do território e indústria. A ideia é boa, mas ignorou a causa das dificuldades e tratou apenas a espuma do problema.
Para os que não conhecem em detalhe os regimes jurídicos que tutelam o licenciamento de operações urbanísticas, as medidas publicadas são fantásticas, pois de um momento para o outro, (i) foi eliminada a necessidade de obter licenças urbanísticas, criando novos casos de comunicação prévia, de isenção e de dispensa de controlo prévio; (ii) passou a dispensar-se a licença de loteamento e a permitir-se a sua viabilização através de comunicação prévia; (iii) aprovou-se um regime de deferimento tácito para as licenças de construção; (iv) eliminou-se o alvará de licença de construção, o qual é substituído pelo recibo do pagamento das taxas devidas; (v) foi eliminada a autorização de utilização quando tenha existido obra sujeita a um controlo prévio, substituindo-se essa autorização pela mera entrega de documentos, sem possibilidade de indeferimento, mas, naturalmente, mantendo-se todos os poderes de fiscalização durante e após a obra; (vi) os regulamentos municipais só podem abranger certo tipo de matérias; (vii) eliminou-se a obrigatoriedade da existência de bidés em casas de banho, permitindo-se que possa existir um duche em vez de banheiras; (viii) viabilizou-se a utilização de soluções para cozinhas como kitchenettes ou cozinhas walk through, e (ix) deixou de ser possível escolher o regime da licença quando é legalmente possível seguir o procedimento simplificado da comunicação prévia.
Há, contudo, algumas das disposições que são de aplaudir, como seja a revisão do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, de 1951, bem como o objetivo de se produzir uma única plataforma para apresentar os projetos aos municípios, entre outras.
Os riscos
Estas são algumas das medidas mais emblemáticas do novo Simplex mas, como diz o ditado, “quando a esmola é grande o povo desconfia”, e por isso importa avaliar os riscos inerentes às novas disposições. Aliás, o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 10/2024 chama a atenção para o facto de já existirem algumas dessas medidas mas não serem utilizadas: “verificou -se que o regime da comunicação prévia era pouco utilizado por receios dos interessados, em resultado de um conjunto de circunstâncias variadas que os incentivavam a utilizar o procedimento mais moroso econsumidor de recursos da licença, em grande medida contrariando o interesse público que se procurava satisfazer”. Este reconhecimento implicaria identificar essas circunstâncias e resolver esses constrangimentos, o que não foi assumido, pois se os requerentes tinham à sua disposição a possibilidade de utilizar a comunicação prévia, por que razão requeriam o licenciamento com todas as suas dificuldades?
A resposta é simples, recorriam ao licenciamento para evitar discutir o cumprimento e as interpretações das disposições legais e dos regulamentos durante a execução da obra, correndo o risco de a mesma ser embargada, ou com alterações que poderiam provocar graves prejuízos. É incomparavelmente mais barato alterar os projetos do que as obras em curso.
Ora, com este novo diploma, em que foi eliminada a opção pelo licenciamento, o risco dos promotores e dos proprietários de edifícios passará a ser incomparavelmente maior e difícil de avaliar. É fácil perceber, pois o mesmo diploma que permite iniciar uma obra apenas com a comunicação prévia é o mesmo que estabelece que “são mantidos os poderes de fiscalização para assegurar o cumprimento das normas relevantes e criam-se condições para que os municípios possam contratar serviços de fiscalização sem necessidade de se ter de aguardar pela aprovação de um decreto-lei que regulamente tal possibilidade”. Na prática facilita-se o início das obras, mas transfere-se a apreciação para a fase de obra.
Dificuldades
A questão de fundo assenta na responsabilização dos projetistas pelo cumprimento de todas as disposições e regulamentos em vigor, e a pergunta que os projetistas colocam é: como podem assumir essa responsabilidade perante diplomas com diferentes entendimentos, com pareceres divergentes das entidades públicas e sem seguros que cubram as responsabilidades financeiras dos riscos, pois os prémios seriam mais elevados do que os honorários?
Do lado dos promotores o problema começa com a avaliação do risco pelas entidades financiadoras, pois sem garantia dos direitos de construção, como era tutelada pelo alvará de construção, como se avaliam os riscos de alterações ou embargo de obras em curso e sem seguros de projeto adequados? Para os empreiteiros o risco não é menor, pelas evidentes razões.
Estamos, na minha opinião, perante um diploma produzido sem a participação dos municípios e dos diferentes intervenientes, com soluções populistas, algumas de difícil compreensão quanto à sua aplicação. Há uma imediata consequência, a retração dos processos de licenciamento até se perceber o que vai acontecer, o que significa “Menos Habitação” para o Programa Mais Habitação.