FERNANDO SANTO

O LABIRINTO LEGISLATIVO DO PROGRAMA MAIS HABITAÇÃO

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Depois de 6 meses desde a apresentação do Programa Mais Habitação, a Lei n.º 56/2023, de 6 de outubro, contempla as disposições da maior parte do Programa. Ao analisar a lei só posso concluir que, independentemente do conteúdo, estamos perante um complexo labirinto legislativo que não permitirá promover o que anuncia, “A presente lei estabelece medidas com o objetivo de garantir mais habitação”. A lei não tem um preâmbulo que defina a estratégia e uma relação entre as disposições e o que pretendem atingir. Esta falta de objetividade e de análise causa efeito, que deveriam resultar do conhecimento do mercado, levou à introdução de disposições com resultados que são o inverso do que se publica. Nesta perspetiva e não só, a avaliação do Senhor Presidente da República, que classificou o Programa Mais Habitação como uma “Lei cartaz”, ainda faz mais sentido depois de se conhecer o texto legislativo, que não tem uma estrutura coerente de medidas, ao contrário de inúmeros diplomas publicados para atingir determinados objetivos. A Lei n.º 56/2023 refere que “Aprova medidas no âmbito da habitação, procedendo a diversas alterações legislativas”. De facto, a lei é uma argamassa pouco consistente, para utilizar a linguagem da construção, que remete para 42 diplomas que foram alterados, abrangendo 126 artigos, entre novos, alterados e revogados e introduz 286 alterações, desde a Promoção Acessível, Incentivos ao arrendamento, Segurança no mercado de arrendamento e Autorização de residência. Não houve sequer o cuidado de republicar o texto dos artigos alterados nos 42 diplomas, para permitir ao cidadão comum conhecer o que entrou em vigor, obrigando assim a consultas em cadeia e a difíceis interpretações jurídicas. Se o licenciamento urbano já é complexo, esta lei seguiu o mesmo caminho e nesse sentido é coerente.

Para um Programa produzir Mais Habitação e a Preços Mais Acessíveis, são necessárias medidas simples, coerentes e pragmáticas que permitam: (1) aumentar a oferta de habitação nova; (2) promover em maior escala a reabilitação de prédios e frações; (3) estimular o investimento no mercado de arrendamento e (4) investir na promoção pública de habitação. Para qualquer destes 4 pilares há uma questão prévia a solucionar, a redução dos custos de produção e do contexto legislativo, que vão desde as normas e regulamentos que determinam os custos de construção, até à complexidade das operações de licenciamento e da aplicação do Código dos Contratos Públicos e fiscalidade, nomeadamente, o IVA.

As medidas para a produção de habitação pública poderiam até ser publicadas num diploma autónomo, pois é matéria que só depende do Governo, das Autarquias e dos meios de financiamento, nomeadamente do PRR. Mas atrevo-me a prever que os objetivos não serão conseguidos, por diversas razões, entre as quais a complexa teia de procedimentos impostos pelo Código dos Contratos Públicos e pela demais legislação em vigor e pela falta de meios técnicos da administração pública e autárquica, pois os que sabiam foram aposentados e a “escola” de promoção de habitação pública perdeu-se.

No que se refere às disposições para incentivar a produção de habitação privada, é por demais evidente que as medidas publicadas não irão garantir o aumento da oferta e a custo mais reduzido, sem o que não será possível habitação a preços acessíveis, quando o rendimento das famílias não permite adquirir ou arrendar aos atuais custos diretos sem margens. A lei ignorou as questões básicas referidas e mesmo antes de ser publicada, o simples anúncio das medidas do Programa começou a produzir Menos Habitação. É incompreensível que apesar de ter havido dezenas de contributos de todos os intervenientes no processo produtivo, o diploma pouco tenha contemplado, como se todos estivessem com o passo trocado.

O mercado imobiliário vive de perceções e os investidores fazem contas antes de decidir, e como a imposição ideológica vertida na Proposta de Lei não deixou margem para dúvidas aos investidores e senhorios, o resultado não será o que o país precisa. No 1º semestre de 2023 o valor das rendas subiu 9,55% em Lisboa e 8,02% no Porto e o investimento começou a abrandar. É compreensível, pois as disposições que foram divulgadas e entraram em vigor, nomeadamente no que se refere ao fomento do arrendamento, não respeitam os princípios da equidade, proporcionalidade e da paridade, continuando a colocar os senhorios como parceiros da Segurança Social.

São claras as disposições que desincentivam o arrendamento (capítulo III), pois a visão desequilibrada na defesa dos inquilinos à custa dos senhorios e a forma como se pretende colocar os imóveis privados ao serviço do mercado de arrendamento, impondo as atuais disposições, é uma das partes que produzirá o efeito contrário. A  intromissão no direito privado passa pelo obrigação das empresas de telecomunicações e distribuidoras de gás, eletricidade e água enviar obrigatoriamente aos municípios, uma lista atualizada da ausência de contratos de fornecimento ou de consumos ou de consumos baixos, por cada prédio urbano ou fração autónoma. Já não é suficiente o que a Autoridade Tributária conhece dos senhorios, as empresas privadas passam a ser o “braço informador”, fazendo lembrar outros tempos.

O Arrendamento forçado de habitações devolutas passou a ser aplicado às frações autónomas de uso habitacional, classificadas como devolutas há mais de dois anos, quando localizadas fora dos territórios do interior.

Por outro lado, os prédios urbanos ou frações autónomas que se encontrem devolutos há mais de um ano, os prédios em ruínas e os terrenos para construção inseridos no solo urbano e cuja qualificação em plano municipal de ordenamento do território atribua aptidão para o uso habitacional, sempre que se localizem em zonas de pressão urbanística, como tal definidas em diploma próprio, estão sujeitos ao agravamento, em substituição do previsto no n.º 3 do artigo 112.º, e a taxa prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 112.º é elevada ao décuplo, agravada, em cada ano subsequente, em mais 20 % e o agravamento referido tem como limite máximo o valor de 20 vezes a taxa prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 112.º. Quem quiser saber o detalhe pesquise, pois as disposições da lei estão assim organizadas e os advogados agradecem, pois há que recorrer aos seus serviços para descodificar.

No que se refere à proteção dos inquilinos a lei determina que a renda dos novos contratos de arrendamento para fins habitacionais que incidam sobre imóveis relativamente aos quais tenham vigorado contratos de arrendamento celebrados nos cinco anos anteriores à entrada em vigor da presente lei não pode exceder o valor da última renda praticada sobre o mesmo imóvel em contrato anterior, aplicado o coeficiente de 1,02. Os Contratos anteriores a 1990 abrangidos pelos artigos 35.º e 36.º do NRAU, não transitam para o mesmo e as medidas de redução do IRS são insignificantes perante a perda de rendimentos imposta pela lei.

Mas não é apenas o investimento no arrendamento que é posto em causa, a reabilitação de edifícios e frações é simplesmente ignorada, apesar de ser a área com mais potencial para mais rapidamente se colocar habitação no mercado. A lei revoga 19 artigos do Estatuto dos Benefícios Fiscais e não se acrescenta incentivos, pelo contrário, quando a construção nova se situar numa Área de Reabilitação Urbana, o IVA aplicado deixa de ser a 6%, o que fazia sentido, por diversos motivos, para passar a 23%.

Sobre a redução de custos de produção a lei ignora este desejado objetivo.

Num próximo artigo serão analisadas outras disposições.

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