HABITAÇÃO, DE MEDIDA EM MEDIDA ATÉ AO DESESPERO DE QUEM PRECISA
Em diversos artigos que escrevi nos últimos anos para a revista FRONTLINE fui destacando as dificuldades crescentes de acesso à habitação por diferentes razões. Referi a ausência de políticas públicas que permitissem minimizar os constrangimentos, promovendo soluções, e identifiquei medidas que, pelo contrário, contribuíram para agravar as dificuldades. Não é futurologia, mas apenas a reflexão sobre as condições e o contexto atual deste mercado, com base na experiência do passado.
Em 2022 a situação agravou-se de forma mais radical, quase abrupta, pois atingiu os que necessitam de uma habitação, através da compra com financiamento, ou arrendamento, mas também os que adquiriram habitação através de empréstimo bancário. Depois de uma situação anormal e muito discutível, de taxas de juro negativas, de repente as taxas de juro de referência com base na Euribor estão em forte subida e podem ultrapassar os 4 ou 5%, uma vez que as taxas nos EUA já estão nos 4%.
Como se costuma dizer, um mal nunca vem só, e se as políticas públicas, por estarem reféns de preconceitos ideológicos, não resolveram os anteriores problemas, as novas medidas só os agravaram. A resposta às necessidades de habitação, seja para aquisição ou para arrendamento, depende (i) da quantidade da oferta face à procura, (ii) dos preços, (iii) das taxas de juro e (iv) da confiança dos investidores para promoverem construção para venda, ou de muitos pequenos aforradores que pretendam aplicar poupanças na compra de habitação para arrendamento.
As políticas do início dos anos 90 do século passado tiveram sucesso porque contribuíram para acelerar a produção, reduzir as taxas de juro e apoiar, com bonificação, as famílias que recorreram a empréstimos. Entre 1991 e 2011 foram construídos cerca de 1,7 milhões de alojamentos clássicos (média de 85 mil por ano) e as taxas de juro reduziram de 20% em 1990 para menos de 3% em 2011. O Orçamento do Estado suportou, entre 1987 e 2011, a bonificação dos juros dos empréstimos, com cerca de 7 mil milhões de euros e, nesse período, foram produzidas mais de 60 mil habitações públicas. Mas, em sentido contrário, não se fomentou o investimento para arrendamento, continuando os senhorios obrigados, até hoje, a assegurar a função social do Esta- do, o que provocou a redução do número de habitações destinadas ao arrendamento, que chegou a apenas 19%. A Lei das Rendas de 2012 previa subsidiar, a par- tir de 2018, os inquilinos de mais baixos rendimentos para pagamento das rendas, mas o Governo seguinte adiou, sem prazo, essa obrigação do Estado. Contudo, a Lei das Rendas de 2012, mais equilibrada e justa, gerou, inicialmente, a confiança necessária para aumentar o número de habitações colocadas no mercado, o que sucedeu pela primeira vez desde 1981.
SOMAR DIFICULDADES
O que temos agora é o tsunami, que somou às anteriores dificuldades as que resultam da subida das taxas de juro, sem que os valores das rendas possam ser minimamente ajustados.
Senão vejamos, o primeiro objetivo é ter mais habitações no mercado, mas se o Governo não tomou medidas para simplificar o licenciamento urbano, cada vez mais jurídico, em vez de técnico e até usado como arma política através da sua judicialização, e se as autarquias tornaram, cada vez mais, os licenciamentos em operações complexas e sem prazo, como é possível promover a construção? Nos últimos 10 anos, entre 2011 e 2021, o total de alojamentos clássicos apenas aumentou 122 mil fogos, o que compara com 850 mil na década anterior, ou seja, apenas 14,4%.
Quando as taxas de juro começaram a subir, os mais altos dignitários da nação manifestaram-se contra a decisão do BCE, e o Governo legislou para obrigar os bancos a negociar com os seus clientes, mas sem qualquer consequência objetiva, pois esse procedimento foi sempre o que fizeram, negociar com os seus clientes em dificuldade, para atenuar o impacto do encargo mensal.
A oportunidade desta medida e o seu objetivo poderão estar resumidos na frase que encheu as notícias:“O Governo obriga os bancos a renegociar os créditos à habitação”.
Mas não deixa de ser curioso, e por isso destaco, que o início da subida das taxas de juros começou, internamente, pela decisão do Governo de aumentar as taxas dos Certificados de Aforro, com o objetivo de atrair poupanças, que assim começaram a sair dos bancos, onde as taxas estão perto de zero.
Compreende-se, pois se a dívida pública também passou para valores cada vez mais elevados, o recurso a este tipo de financiamento pode até ser favorável para reduzir os encargos da dívida pública. Como resposta, os bancos, para manterem os depósitos dos seus clientes, também terão que subir as taxas de juro, refletindo os mesmos nos empréstimos à habitação. Estes aumentos irão, mais uma vez, atingir os mais jovens que adquiriam habitação no período das taxas negativas ou nulas e, supostamente, não foram avisados que essa situação seria sempre transitória.
MERCADO DE ARRENDAMENTO
Quando chegamos ao mercado de arrendamento, as decisões políticas vertidas na legislação só podem agravar a situação de desconfiança que começou com as alterações da Lei das Rendas, protegendo os inquilinos à custa dos senhorios, colocando-se o Governo fora da sua obrigação social. Depois veio o Adicional ao IMI e agora, com taxas de inflação acima de 10% e quando a legislação determinava um aumento das rendas de 5,44% para 2023, altera-se a lei e fixa-se o aumento em 2%, como se os restantes custos, incluindo os de energia, elevadores e manutenção só tivessem subido 2%.
Só que neste jogo, sem princípios nem regras fixas, apenas sujeito ao livre-arbítrio, os senhorios optaram por não renovar contratos de arrendamento que foram caducando, para poderem arrendar com novos preços. É a resposta a medidas erráticas, geradoras de desconfiança, e que está a levar o Governo a procurar uma outra medida para obrigar os novos contratos a não aumentarem mais do que 2%. Medida após medida serão cada vez mais os que não investirão na compra de uma habitação para o mercado e irão colocar as suas poupanças em Certificados de Aforro, ou em contas a prazo e, no final do dia, as rendas continuarão a subir com menos habitações no mercado. Seguramente, pela situação a que chegámos na última década, ou se invertem as políticas para resolução dos problemas, chamando todos os intervenientes e estabelecendo as medidas necessárias, com base num ambiente de confiança entre as partes que fazem parte da solução, ou, ano após ano, a situação será mais grave e nem a execução do PRR atingirá os objetivos pretendidos para a habitação pública.