FERNANDO SANTO

O CHOQUE COM A REALIDADE – As gerações com menos de 50 anos habituaram-se a viver nos países da União Europeia (UE) num ambiente de liberdade, de direitos e garantias, que permitiram acreditar que o mundo caminharia para a crescente implementação de regimes democráticos, e que a paz era um bem garantido. 

Já as gerações com mais de 50 anos sofreram, direta ou indiretamente, os horrores da Segunda Guerra Mundial e muitos dos portugueses estiveram na guerra nas antigas colónias portuguesas. Pensávamos que essa parte da história já fazia parte de um passado que não voltaria a repetir-se e que o desenvolvimento dos países da UE, com a gradual adesão de novos membros, seria a garantia da paz, pois é bem mais importante do que as vantagens económicas que começaram a afirmar-se através da CEE. O bem-estar do Estado Social desta parte da Europa mostrou ao mundo o sentido do humanismo, da distribuição e dos direitos e liberdades que marcam a diferença. Talvez porque tudo isto foi dado como garantido, as estratégias de defesa e de produção interna do que é essencial, passaram a não ser uma preocupação à medida que as gerações mais velhas foram desaparecendo, e com elas as referências a um passado bem mais difícil em todas as dimensões. As preocupações das últimas duas décadas passaram por medidas de curto prazo necessárias para ganhar eleições e para alimentar os desejáveis conflitos que justificavam as diferenças, renasceu a classificação dos eleitores entre esquerda e direita. Acentuou-se a discussão sobre temas fraturantes, permitindo alimentar mais divisões, traduzidas num número cres-cente de partidos, sendo cada vez mais difícil governar e quase impossível definir estratégias com modelos de desenvolvimento e crescimento para o médio e longo prazo, que obrigariam a acordos de regime.

REGIMES AUTORITÁRIOS

Mas apesar das virtudes dos regimes democráticos, não tem sido este o modelo seguido por muitos regimes autocráticos, que definiram estratégias de desenvolvimento para períodos longos, utilizando os todos os meios que consideram necessários. Segundo o Democracy Index, que pretende examinar o estado da democracia em 167 países, a democratização tem vindo a reduzir, ganhando terreno os regimes autoritários. Atenta a realidade, parece que muitos países da União Europeia passaram a viver sob o manto da “fantasia”, tal a diferença entre a estratégia que deveria ser aplicada prevendo os riscos futuros e a crescente autonomia da EU, e a que tem sido seguida. O acesso a bens deixou de resultar de uma parte das poupanças, para depender da hipoteca de rendimentos futuros. Os bens, em vez de serem produzidos na UE, passaram a ser importados, porque eram mais baratos. Na UE a produção ficou sujeita, e bem, a regras exigentes de direitos laborais, proteção dos recursos naturais e do ambiente, mas não há dificuldade em consumir ou utilizar bens importados mesmo que as “nossas” regras não sejam minimamente cumpridas. Mas a realidade encarregou-se de evidenciar o que muitos não queriam ver.

CONFRONTO COM O MUNDO REAL

Depois da crise financeira iniciada em 2008 registou-se o confronto com o mundo real das dívidas públicas e com a necessidade de se defender o euro. Depois, as divisões sobre a entrada de refugiados concretizou roturas, e o Reino Unido saiu da UE, quando, já neste século, 13 países tinham aderido. Até que chegou a pandemia em 2020 e, de repente, descobriu-se que a UE pouco produzia e que quase tudo era importado da China e de outros países da Ásia. Foi um novo choque, não havia álcool, gel, máscaras, e outros produtos básicos, até se chegar aos chips para produção de automóveis. Afinal havia que refletir sobre as estratégias de produção, para se voltar a garantir a produção interna de bens essenciais. Ao combate à pandemia chamou-se “guerra”, e todos os responsáveis políticos passaram a usar a terminologia de guerra para atacar a Covid.

ESTRATÉGIA PARA A ENERGIA

Mas nesta fantasia, a estratégia para a energia também ficou contaminada, pois passou a privilegiar os investimentos nas energias renováveis, esquecendo que, sendo intermitentes, não eliminam as convencionais. Muitas centrais nucleares e a carvão foram encerradas, aumenta-do a importação de gás da Rússia e de outros países fora da UE, ou seja, a UE ficou com maior dependência energética. A descarbonização passou a estar na ordem do dia, apesar da pouca expressão a nível do planeta, pois os países da UE apenas produzem 8% das emissões de CO2, enquanto China, EUA, Rússia e Índia emitem 60%. O aumento do custo da energia acabou por agravar os custos de produção e de vida, a que se somam as taxas de carbono, e continuou a ser mais barato importar, mesmo de países em que 50% da energia é produzida por carvão.A França resistiu a esta dinâmica politicamente correta, com as centrais nucleares, e Portugal encerrou duas centrais a carvão, mas continuou a importar energia a carvão produzida em Espanha e Marrocos.

INÍCIO DE UMA GUERRA

Até que a 24 de fevereiro assistimos em direto ao início de uma guerra na Europa. Não era uma guerra como a da Covid, era uma guerra a sério e a cores, como a que conhecíamos de filmes a preto e branco. Em poucos dias a UE percebeu que tinha andado distraída sobre as grandes questões mundiais. De repente, a Alemanha declara que irá despender 2% do PIB para a defesa, coloca em causa as políticas energéticas, não deixa licenciar a ligação para importar gás da Rússia e a UE declara a energia nuclear como verde. O preço dos combustíveis dispara e a dependência energética deixou à vista as políticas pouco ponderadas dos últimos anos.

Na data em que escrevo este artigo há a esperança de um acordo de paz que termine com o conflito, mas nada poderá restituir as vidas perdidas, o sofrimento e os bens destruídos. O confronto com a realidade levou, pela primeira vez, a uma clara união na defesa da liberdade, da paz e dos direitos humanos. Percebeu-se que estes valores exigem novas estratégias para a sua defesa e que são a essência do modelo em que a maioria acredita, apesar de ainda haver quem continue a gostar de regimes totalitários.

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