A EXECUÇÃO DO PRR E A “TEMPESTADE PERFEITA” NO SETOR DA CONSTRUÇÃO – O Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) tem sido divulgado como uma oportunidade única, ou a solução para resposta aos projetos de investimento de que o país carece. No que se refere à execução de obras públicas, o PRR contempla elevados montantes, amplamente divulgados pelo Governo durante a recente campanha eleitoral autárquica, como resposta ao financiamento de obras que os municípios necessitam de realizar, depois de um longo período em que a execução de obra pública foi muito reduzida. Contudo, para executar obras os meios financeiros são uma condição necessária, mas não suficiente, pois há outras condições: (i) as empresas de construção têm que ter capacidade instalada para responder às exigências da produção e (ii) a legislação que regula a contratação pública ser adequada, neste caso o Código dos Contratos Públicos (CCP). Ora, na minha opinião, a atual capacidade produtiva das empresas e a legislação para a sua contratação (CCP) não permitem concretizar os objetivos do PRR, nos prazos adequados e com os preços ajustados ao que se pretende programar.
Muito se tem falado do PRR e pouco dos meios para a sua execução, e esta não é certamente uma questão menor, o que exige medidas para mitigar as dificuldades. Mas se é fácil alterar o CCP, o mesmo não se pode dizer das empresas de construção. Quando se trata de adquirir bens transacionáveis produzidos noutros países, a questão financeira é determinante, mas no caso das obras públicas a produção é interna e realizada nos locais onde se localizam as obras. Costuma-se dizer que a indústria da construção é a única que vende o produto e a fábrica em simultâneo e esta própria natureza sempre justificou, e bem, um regime de contratação autónomo, até surgir o CCP.
CRISE FINANCEIRA – Não sendo uma questão conjuntural, convém recordar como chegámos aqui, pois no final do século passado as empresas de construção conseguiram produzir as obras da Expo’98 e da zona urbana, a ponte Vasco da Gama e muitas outras infraestruturas, para além de mais de 100 mil habitações produzidas por ano. Mas o fim deste ciclo, com os sinais da crise financeira, começou em 2009, agravando-se de forma drástica com o Pedido de Assistência Financeira a Portugal e a entrada da troika (Comissão Europeia, BCE e FMI) em maio de 2011. A execução de obras públicas ficou quase paralisada, sem se ter em conta a consequência estrutural que produziria no setor da construção, a curto e a médio prazo. Assistimos à falência de milhares de empresas, à perda de mais de 250 mil postos de trabalho, muitos dos quais de elevada formação e experiência. As gerações mais velhas, com mais de 50 anos, foram obrigadas a emigrar, a recorrer à reforma antecipada ou a ficar temporariamente no desemprego até atingirem a idade da reforma. Essa geração, dos mais experientes, é essencial no processo de formação interna e de passagem de conhecimentos aos mais novos, mas esse fio condutor foi também quebrado. Infelizmente, no setor privado o contexto não foi diferente. Depois da capacidade instalada ter construído 120 mil habitações em 2002, a produção reduziu para 59.256 habitações em 2008 e passou para apenas 8.025 em 2014, ou seja, uma quantidade residual e insuficiente para manter as empresas existentes. No que se refere ao licenciamento de novas habitações, que corresponde ao que será construído nos anos seguintes, a redução foi semelhante, tendo passado de 45.919 habitações licenciadas em 2008 para apenas 6.934 em 2014.
ALTERAÇÕES NO SETOR – Após esta grave crise, as empresas de construção, que resistiram, reduziram a sua dimensão, ficando muito mais dependentes de subempreiteiros, os quais passaram também a menor dimensão e a contratar outros subempreiteiros com dimensão ainda mais reduzida, dificultando a gestão das obras, nomeadamente o controlo de custos, de prazos e da qualidade. Esta realidade tem sido bem visível na contratação de obras particulares, assistindo-se a um permanente aumento dos custos e a dificuldades crescentes em fixar e cumprir prazos. Mas para a “tempestade” ser perfeita, nos últimos meses passou a haver dificuldade em obter materiais e os preços foram aumentando, nomeadamente do ferro, do alumínio e do vidro, entre muitos outros. No atual contexto, em que a capacidade existente já é insuficiente para responder ao investimento privado, qual será a opção das empresas face ao investimento público, optam por concorrer a estas obras em vez das privadas? É preciso ter em conta que a capacidade exigida para as atuais obras particulares ainda é inferior à registada em 2008, pois em 2020 foram concluídas cerca de 19.900 habitações e licenciadas 33.065, o que compara com 59.256 e 45.919, respetivamente. Entretanto, algumas obras públicas que foram lançadas ficaram desertas, pois os preços apresentados pelos concorrentes foram superiores aos preços base.
Parece-me evidente que, tendo em conta as disposições do CCP, as empresas optarão por privilegiar as obras particulares, pois o CCP não é o instrumento adequado para a contratação de empreitadas de obras públicas. Ao revogar o antigo Regime Jurídico de Empreitadas de Obras Públicas (RJEOP), que contemplava disposições técnicas muito mais adequadas à natureza deste tipo de contratos, foi criado um problema que, apesar das sucessivas alterações ainda não está solucionado, para além de muitos milhões de euros despendidos em formação e pareceres. Certamente que não será na data de lançamento dos concursos que o Governo se confrontará com este dilema, pelo que, no meu entendimento, terá que haver uma estratégia ou medidas que mitiguem as dificuldades e promovam a reorganização do setor. Destruir as capacidades instaladas foi fácil e rápido, mas voltar a reorganizar um setor que é fundamental para o desenvolvimento do país e para a produção de habitação a preços acessíveis levará muito tempo, bem mais do que o programado para o PRR, e esta oportunidade não pode perder-se, como já perdemos muitas outras.