FERNANDO SANTO

         

O SISTEMA PRISIONAL, ESSE DESCONHECIDO De entre todos os sistemas públicos que são referências da nossa democracia, o Sistema Prisional não acompanhou a evolução dos restantes, não se adaptou aos novos conceitos de reabilitação e de reinserção social, necessitando de uma urgente atualização. Estamos a falar de criar condições não dispendiosas para a formação pessoal e profissional a desenvolver dentro das prisões, criando estímulos e tendo como objetivo diminuir a probabilidade de reincidência, pois a maioria dos reclusos quando termina a pena e regressa à sociedade não consegue um meio de subsistência e volta a ser reincidente. Cerca de 7 em cada 10 reclusos voltam a cometer crimes quando regressam à liberdade, ou seja, os casos de reabilitação são ainda reduzidos. O Sistema Prisional ficou verdadeiramente preso em conceitos, práticas e edifícios do passado, em que a privação da liberdade é o castigo, enquanto medida de reabilitação/reinserção. 

 Outros sistemas públicos 

Tivemos uma evolução muito positiva de outros sistemas públicos, que importa recordar. O Serviço Nacional de Saúde foi criado em 1977 e tem estado ao serviço da população, de forma exemplar, quando comparado com outros países ditos desenvolvidos. Enquanto em 1974 a esperança média de vida em Portugal era de 64,8 anos para os homens e de 71,8 anos para as mulheres, entre 2017 e 2019 passou para 78 anos para os homens e 83,5 anos para as mulheres. Em 43 anos a esperança média de vida aumentou em média 12,5 anos (18%). Relativamente ao Ensino, os números também são relevantes, pois a taxa de analfabetismo de 25,7% em 1970, reduziu para 5,2% em 2011. A escolaridade passou a obrigatória, o ensino básico e o secundário foram unificados e o acesso ao ensino superior foi explosivo. No ano letivo de 1970/71 o número de estudantes do ensino superior era de aproximadamente 50 mil, hoje ultrapassa os 400 mil alunos. Quanto à Segurança Social, de 701.561 reformados pela Segurança Social e 78.838 pensionistas da CGA, em 1974, no total de 780.399 pessoas, passámos para 2.954.755 de reformados da SS e para 645.528 pensionistas em 2019, o que totaliza mais de 3,6 milhões. Contudo, esta evolução como resposta às necessidades dos cidadãos acabou por criar um novo problema, que é o da sustentabilidade deste sistema. Há mais bons exemplos das transformações conseguidas durante o regime democrático que teve a visão e a capacidade de responder a tantas necessidades, mas se analisarmos o Sistema Prisional atrevo-me a dizer que o seu desenvolvimento não esteve à altura e não deu resposta aos desafios do nosso tempo. Até exercer funções públicas no Ministério da Justiça nunca tinha entrado num Estabelecimento Prisional (EP), mas para definir prioridades com escassos recursos, visitei, em pormenor, 38 das 49 prisões existentes. O confronto com uma realidade que quase todos desconhecemos marca profundamente os que têm essa oportunidade e apela ao mais elementar sentido de humanismo, afastando qualquer preconceito. Se atendermos às condições dos edifícios, podemos afirmar que as diferenças entre prisões são enormes, como se pertencessem a diferentes países, sendo a sobrelotação um dos maiores problemas. Em 1974 a taxa de ocupação do Sistema Prisional era de aproximadamente 28%, enquanto nas últimas décadas ultrapassou os 100%, incluindo as camaratas. 

 Quando as prisões são notícia 

As prisões são apenas notícia pelos piores motivos, motins, divulgação de festas nas redes sociais ou atos de violência e estão normalmente associadas à ideia de castigo. Com a pandemia o Sistema Prisional voltou a ser notícia, porque o Governo decidiu e bem, na minha opinião, libertar 1874 reclusos, de um total de 12.618, dos quais 11.775 são homens. Esta libertação provocou receio numa parte da população, por admitir que a segurança poderia ser ainda mais ameaçada, o que se justifica pelo desconhecimento do tipo de crimes que leva à prisão um elevado número de cidadãos. Contudo, as causas são muito diversas e apenas aproximadamente 25% dos reclusos cumprem penas por crimes contra pessoas e 40 % cumprem penas inferiores a 6 anos de prisão. Mais recentemente as prisões voltaram a ser notícia quando foram divulgados surtos de Covid-19 em diversos EP. Ora se a população tivesse conhecimento das condições em que está instalada uma parte significativa dos reclusos, certamente mudaria de ideia sobre a diferença entre estar preso numa cela individual ou numa camarata com 10 a 20 reclusos, em beliches de 2 ou 3 níveis, em que estão encerrados desde o fim da tarde até à manhã do dia seguinte. Temos EP com condições adequadas aos valores do regime em que vivemos, assim como temos EP que já deveriam ter sido substituídos ou profundamente remodelados. Olhando para esta realidade, poderíamos concluir que o número de anos de uma pena deveria ser ponderado em função das condições objetivas em que se está preso, pois um ano numa cela individual não é o mesmo que um ano num beliche de uma camarata com mais 15 reclusos. 

 Investir na reabilitação social 

Na minha opinião, o grande objetivo do Sistema Prisional deveria ser o de utilizar o tempo de privação de liberdade para a reabilitação, não só em termos dos valores que devem ser desenvolvidos, mas também na formação profissional que pode ser apoiada para facilitar a reintegração na sociedade após cumprimento da pena. Para esses objetivos há necessidade de edifícios com áreas adequadas, existindo diversos EP instalados em herdades com dezenas e centenas de hectares, ou seja, terreno não falta. Infelizmente a maioria destes edifícios são apenas depósitos de pessoas que durante um tempo da sua vida ficam sem liberdade, não tendo condições para poderem cumprir essa missão. Contudo, há no Sistema Prisional alguns bons exemplos de oficinas e de centros de formação que vão fazendo o seu trabalho, mas para que tal aconteça de forma generalizada, é preciso substituir uma parte das prisões de pequena dimensão, chamadas Comarcãs, por edifícios a construir onde existem grandes áreas disponíveis. Pontualmente, pode-se melhorar o que existe, ou construir um ou outro EP, como aconteceu entre 2011 e 2014, pois apesar das restrições da troika o Ministério da Justiça reabilitou e criou 850 novos lugares com um investimento de cerca de 30 milhões de euros. Mas a questão de fundo tem outra dimensão que deveria passar por um acordo de regime para implementar um programa ao longo de vários anos que reduzisse o número de EP, pois não me parece que se justifiquem 49 EP, e que permitisse ampliar e dotar de meios os que têm condições para talSabemos que o universo das pessoas que passam pelo Sistema Prisional é relativamente pequeno e tem pouco impacto nos atos eleitorais, mas este critério de natureza partidária não pode ser o motivo para se manter como está. Numa perspetiva financeira não podemos ignorar que um recluso custa mais de 1200 euros por mês e no conjunto do sistema (custos diretos) custa mais de 130 milhões de euros por ano. Este custo deveria ser também visto como um investimento para que a reincidência fosse reduzida, contribuindo para uma sociedade melhor. Por outro lado, a venda de uma parte dos edifícios a substituir contribuiria para o financiamento dos novos edifícios nos EP existentes. Talvez a pandemia obrigue a olhar esta realidade de forma diferente, permitindo conhecer o que tem estado encerrado atrás das grades da indiferença. 

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