É URGENTE A AÇÃO
O conjunto de iniciativas legislativas postas em discussão plenária na Assembleia da República tem como ponto comum e exclusivo a perspetiva securitária no que aos abusos sexuais praticados contra menores diz respeito, partindo do valioso trabalho levado a cabo pela Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica.
Todas as iniciativas são exequíveis e sem dificuldade de maior se podem aumentar penas, alterar a idade das vítimas para efeitos de prescrição, promover inquéritos, criar meios de denúncia ou impedir a suspensão da execução de uma pena.
Importa, contudo, ter em conta que o Código Penal se constitui como uma “unidade”, no sentido em que é construído para responder em determinado momento histórico aos anseios da população, aos problemas concretos de vida em toda a sua amplitude, em dar-lhe a possibilidade de perdurar no tempo, e assim, evitando desestabilização, desequilíbrio e ausência de segurança jurídica.
O cidadão deve ter uma relação com as suas leis penais de modo a não ser surpreendido, ou seja, de modo a que tenha uma ideia do que lhe possa acontecer se levar a cabo determinada conduta que ele sabe poder constituir um crime e evitar vir a ser punido com uma pena inesperada ou desproporcionada.
À semelhança do equilíbrio sempre instável entre a liberdade e a segurança, a alteração dos principais Códigos deve saber esperar pelo momento mais adequado para a sua alteração e que é aquele que corresponde à aceitação dos destinatários, que somos todos nós. Ou seja, é necessário fazer o equilíbrio entre o tempo de vigência daquilo que se pretende alterar e o tempo da entrada em vigor das alterações que se pretendem introduzir. Estas são regras do sistema penal no mundo democrático!
Citando o Dr. Laborinho Lúcio, figura maior da Justiça: “O Estado de Direito é um estado com mãos largas, que deixa fugir por entre os dedos várias situações que gostaríamos de ver punidas, mas que não podemos. Porque há regras e a alternativa a isto é muitíssimo pior: é tornar sistémico um sistema autocrático, totalitário, em que em nome de uma qualquer ideia de moralidade púbica desatamos a punir toda a gente sem quaisquer garantias”.
A Comissão Independente
Não podendo deixar de ser dito, apesar de o tema ter vindo a ganhar notoriedade, a Igreja Católica só recentemente decidiu constituir a Comissão Independente para o Estudo de Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica. Mais valendo tarde que nunca, foi a mesma constituída formalmente, integrando figuras da nossa sociedade, representando o melhor que temos em saber, seriedade e credibilidade.
Apesar disso, continuaram a ouvir-se comentários acerca da velha fama das comissões, nomeadamente que tarde ou nunca acabam os seus trabalhos e se acabam já ninguém se recordará das razões que levaram ao seu tardio resultado. Com esta Comissão, criada por iniciativa da Igreja, repito, aconteceu precisamente o contrário. O prazo proposto de um ano foi de facto de um ano. As diligências levadas a cabo foram de enorme profundidade e os resultados obtidos estão fundamentados com o maior cuidado. O seu trabalho foi aplaudido por todos os setores do país, incluindo a Igreja. A expectativa acerca do que fazer com esses resultados era e é grande.
Esta é uma oportunidade que todos, e principalmente a hierarquia da Igreja, terá a obrigação de agarrar com veemência, tomando medidas claras e fortes no sentido de ser percebida a existência de vontade real para apoiar as vítimas, e de começar a afastar os agressores e, assim, fazendo mudar a imagem da Igreja de modo a recuperar a confiança, o prestígio e o respeito à Igreja e aos seus membros.
A Comissão deu conta ao Ministério Público das situações em que detetou indícios consistentes de natureza criminal, reuniu com os membros do Governo competentes em razão da matéria e entregou e conversou com a Igreja dando-lhe conta do conteúdo do relatório final da Comissão.
O momento da Igreja Católica
A Igreja infelizmente manteve-se silenciosa, transmitindo a ideia de que provavelmente nada faria. Os factos em causa – crimes sexuais contra menores – são suficientemente graves para exigir uma resposta assertiva, determinada e eficaz. Tal não sucedeu. Ou, tal ainda não aconteceu!
Este é o momento da Igreja Católica. O momento em que a sua hierarquia deverá ter o aconselhamento dos seus melhores, o momento em que deve tomar medidas como sinais de que os comportamentos de abusos de crianças devem, como diz o Papa Francisco, ser objeto de grande transparência na sua vigilância e de tolerância zero na sua reparação e castigo. Acreditemos que assim venha a acontecer!
Se assim não for é porque a Igreja Católica não percebeu ainda o risco que corre pela não adaptação aos novos tempos, nos quais deste modo não conseguirá repetir o que de bom deu à cultura ocidental, designadamente em termos de identidade e valores, por não ter querido repensar a distorção comportamental causada de modo próprio a esses valores.
Por isso é urgente a ação! E a ação passa pelo exemplo e este pela exigência de começar a “castigar” os “agressores”, primeiro afastando-os através de medidas administrativas cautelares, depois e com celeridade iniciar o respetivo processo com o óbvio exercício de contraditório. A hierarquia da Igreja Católica não pode deixar-se paralisar por divisões internas e, assim, contribuindo ela própria para a desvalorização do trabalho competentemente realizado pela Comissão que criou. Só agindo com urgência, a Igreja Católica voltará a ser exemplo. E exemplo também para instituições sociais, associações ligadas ao apoio às crianças e aos jovens, aos espaços fechados como lares, hospitais psiquiátricos ou estabelecimentos prisionais.
Responsabilidade e sentido de urgência
Não podendo deixar de se falar na família, uma vez que é no seu seio que ocorre a maioria dos abusos de natureza sexual e que a sociedade sempre silenciou em nome de razões incompreensíveis e com consequências nefastas e muitas vezes irreversíveis. Não agindo, não julgue a Igreja que é também por acontecer noutros locais, e são muitos, que a sua responsabilidade se dissipará.
A sua longa existência, a sua influência no mundo em aspetos espirituais, religiosos, morais, políticos e socioculturais, dão-lhe solidez e esperança de longa vida, mas ao mesmo tempo foi-lhe sendo dada cada vez mais responsabilidade e sentido de urgência num mundo novo que se move a velocidade difícil de acompanhar.
Deve, a hierarquia da Igreja por tudo o que fica dito, assumir as suas responsabilidades, com equilíbrio e urgência, sob pena de, não o fazendo, desiludir os seus crentes e afastar os que nela se abrigam nos momentos mais difíceis das suas vidas.