PRESUNÇÕES
Temos assistido ao aumento do número de boatos, de falsidades que se propalam como certezas, de erros de apreciação, de excesso de primeiras impressões. É natural, porque a velocidade e o alcance, geográfico e demográfico, das notícias e das “notícias”, de tudo o que se diz e escreve, é tão grande que se observam disseminações quase instantâneas e com impacto muitas vezes internacional.
Vivemos num meio em que os media recorrem mais a impressões e especulações do que à simples e honesta transmissão de factos documentados. É muito mais apetitoso o que se comenta, inventa e acrescenta, do que o acontecimento em si. Tudo, supõe-se, terá uma razão obscura subjacente, mais do que uma causa. Nada pode ser resultado de casualidades e haverá, porque sim, motivações malévolas na totalidade, ou quase, das ações humanas. Desmentir é confirmar. Mais do que na psicanálise, entrámos numa etologia em que a sobrevivência e o sucesso só podem ser atingidos por vias ínvias. Os comentadores especulam para servir as audiências que os sorvem como adivinhos e não somente como ficcionistas. Tudo tem uma tática, um propósito inconfessado. Só há jogadas e chapeladas.
“Ele conseguiu porque alguém meteu uma cunha por ele.”
Ele conseguiu porque alguém meteu uma cunha por ele. Nada, absolutamente nada, pode resultar de coincidências, de direitos assegurados ou, isso nunca, de méritos. Se um português chega a um lugar com visibilidade e prestígio, logo não faltam os que diminuem o conseguido, denigrem o arrivista, invejam o salário, apoucam as virtudes, salientam os defeitos e, como se não bastasse calcar no compatriota, aplica-se a mesma tabela à vítima e a quem a apoia.
Se umas quaisquer portuguesas são bem tratadas no SNS, o que ocorre com maior frequência do que o contrário, só pode ser porque tiveram uma cunha. Não, nunca teriam conseguido sem mexerem uns cordelinhos. E, claro está, a culpa tem de ser de todos, desde os donos do “cordel” às oportunistas a quem o SNS respondeu como deveria ter respondido. Sim, porque não vale a pena explicar que o dito SNS respondeu exatamente da mesma maneira a todos os que estavam em condição igual. Houve falcatrua, foi assim porque disseram na TV e eu até ouvi uns senhores, os que souberam descobrir as maroscas, a explicar tudo direitinho.
A mim não me enganam mais. Malandros dos políticos. É tudo amigos e compadrio. Será? Até acredito que haja muito compadrio e “contactos”. Há malandros em todo o lado. E pessoas de bem. Há fraudes e malfeitorias. E também há coisas que funcionam se as deixarem funcionar. Mas se o boato e a perda de presunção de inocência, o desaparecimento da simples hipótese académica de que tudo tenha corrido como a lei e a ética determinariam, se sobrepõem ao bom senso é também porque, num mundo onde, felizmente, as comunicações se tornaram simples, o sistema de justiça que nos deveria proteger da insídia não funciona. Pior, agrava a suspeita que não fundamenta e dessa forma contribuiu para a propagação da desconfiança. E, quando finalmente, tardiamente, julga e, eventualmente, condena ou absolve, é brando nas penas e ineficaz na publicidade da inocência. Não faz mal. O que interessa é o opróbrio que fica, muito mais relevante do que a aplicação de uma pena justa, equilibrada e preventiva da reincidência no erro.