FORÇA DE TRABALHO
A ideia de que há uma força no trabalho tem uma relevância máxima em tudo o que diz respeito à produção de cuidados na saúde. Singular pelo saber, pela formação, pelos riscos em que incorre e faz incorrer, pela disponibilidade, capacidade de sacrifício, valores, ética, regulação, imprescindibilidade, intervenção cooperante e sequencial, relação particular com a hierarquia, elevado nível de independência no momento em que atua e, até mesmo, solidão que agrava um desgaste precoce e em aceleração com o avançar da idade que, paradoxalmente, corresponde ao acrescentar de experiência e proficiência. É esta a força do trabalho na saúde. É uma força porque é motriz para a obtenção de ganhos de saúde, a efetividade, e é a primeira responsável pela eficiência.
São os trabalhadores da saúde que fazem as coisas acontecer. Ainda não há inteligência artificial que os substitua. Nem sei se haverá, antes de chegarmos a androides, os do cinema, que possam emular humanos. O trabalho humano e especializado é a força do sistema de saúde. E essa força escasseia, rareia e já desapareceu em alguns lugares do mundo e até de Portugal. Verdade. Há especialidades médicas que não se encontram em zonas de Portugal, nem no setor público, nem nos privados. Para resolver esse problema de escassez, tendencialmente mundial, os governos dos países tentam avançar com uma panóplia de soluções que, em qualquer caso, só terão resultados visíveis daqui a alguns anos.
O documento NHS Long Term Workfor-ce Plan(1), de junho de 2023, é uma dessas tentativas de procurar e apresentar soluções. Em suma, como não podia deixar de ser, propõem acelerar formação, desregular acesso, tentar fixar profissionais, esbater barreiras entre os campos de intervenção de cada grupo profissional. Nem tudo é bom e há riscos inerentes a qualquer processo de aceleração na aprendizagem ou na desregulação de acesso. Mas são riscos que se podem antecipar e compensar por maior atenção ao controlo de qualidade e à regulação a jusante. Tem ideias, é um plano. Por cá, nada. Ou quase nada. E cada tentativa tem sido votada ao insucesso. Os diversos grupos profissionais não se entendem, não colaboram para as soluções, insistem em competir em torno de migalhas, discutem territórios que só existem para penalizar as populações carenciadas, não aceitam evidência que venha de fora, esgrimem argumentos em torno da segurança clínica quando estão, precisamente, a colocar entraves a essa segurança. E, acredito, nem dão por isto tudo. Estão enraizados em mecanismos que perduram no tempo por inércia de governantes, ausência de ligação entre formação e necessidades em saúde, não veem como tudo é dinâmico e em mudança evolutiva, nem com as “crises” têm aprendido, entrincheiram-se em associações profissionais que não enxergam para lá dos privilégios, tão poucos, que cada profissão acha que tem.
Acima de tudo, há que diminuir as barreiras no acesso à formação em profissões de saúde. Há que reformular os curriculade aprendizagem e definir objetivos para as capacidades a atingir no fim do processo formativo. Pode haver lugar, acho que há, a novas profissões nos cuidados diretos. Nem tudo pode só ser feito por especia-listas e os generalistas desapareceram. Há que capacitar cada grupo profissional para intervenções críticas e autónomas sem que a competição inter e intraprofissional seja um empecilho ao serviço das populações. Há que reforçar a intervenção regulamentar, preventiva e corretiva, ao nível da segurança dos atos sobre a saúde individual e populacional. Há que atentar à manutenção de treino e recertificação. É imperioso incutir um sentido crescente de responsabilidade que atravesse todos os grupos profissio-nais. Mas tudo o que implicar melhoria, na celeridade e qualidade, tem de ser remunerado de forma a que cada profissional sinta gratificação acrescida com aquilo que faz. Reformar a força de trabalho da saúde será um processo longo, mas não é impossível.
1)https://www.england.nhs.uk/wp-content/uploads/2023/06/nhs-long-term-workforce-plan.pdf