ABUSOS
Aceito que é escusado repetir. Vivemos tempos em que a velocidade de transmissão da informação, associada à amplificação de efeitos, que resulta de tudo chegar a muita gente, e à propagação de boatos e erros – as fake news–, colocam desafios ao leitor mais atento do que nos rodeia neste mundo. Está feito, repeti. Mesmo assim, num tempo em que se espera aprender tudo mais depressa, há coisas escondidas, muitas. Umas de que sempre se falou e desconfiou. Outras de que se falou pouco, por vergonha, encobrimento ou desvalorização dos factos. Os abusos sexuais na Igreja Católica cabem dentro das duas categorias anteriores. Como os casos ocorridos noutros países faziam prever, era inevitável que existissem também em Portugal, sendo as Igrejas organizações de pessoas em que cabe tudo o que a humanidade tem. Era certo que, existindo e tendo estado ausente dos tribunais nacionais, tinha andado a ser encoberta, desculpada e ignorada.
Entendeu a Igreja Católica, confrontada com a suspeita de uma realidade possivelmente tenebrosa, nomear uma Comissão para colher informação, receber denúncias e construir um relatório que pudesse, necessariamente com todas as limitações de um estudo retrospectivo que não poderia ser um rastreio, dar uma ideia supostamente fiel do que tinham sido os abusos sexuais cometidos no seio da Igreja Católica. Confrontados com os dados, obrigatoriamente sujeitos a extrapolações matemáticas que a epidemiologia não prospectiva tem de usar, com alguma dose de especulação a que as inferências obrigam, quase todos, sublinho o TODOS, reagiram mal.
Uns, ainda não se sabia tudo, já estavam a dizer que “era menos do que se deveria esperar”, outros, descontentes com a evidência, vieram a terreiro contestar a metodologia que tinham encomendado, mais uns quantos aproveitaram para denegrir toda a Igreja Católica e os seus ministros. Uma coisa será certa. Como se desconfiava, houve abusos sexuais e teria sido melhor que nem um tivesse ocorrido. Só por isso, havendo suspeitos e possíveis culpados, logo deveria ter havido afastamento profilático dos supostos implicados e abrir espaço à investigação judicial. Mas até este ato de bom senso tem sido problemático.
Todavia, não descurando o facto de ter havido vítimas, tive ocasião de ler as coisas mais descabidas. Houve quem tenha elaborado sobre a psicodinâmica dos castos, uma suposta responsabilidade resultante da moral sexual do Vaticano, se tenham escritos vitupérios sobre o todo como se este não tivesse partes, um renascimento do ódio aos homossexuais, como se uma certa cultura de “colégio interno” fosse a mãe de todos os pecados. E o Padre Amaro não era pedófilo. Quase que não haveria outro tema essencial na vida dos portugueses. Ora, não estou aqui a escrever sobre a mesma coisa?
O certo é que a maior probabilidade de haver abusos sexuais continua a residir na família, sem descurar o que possa acontecer em instituições que acolhem crianças desvalidas, em lares de idosos, em prisões, em escolas. E também acontecerá em outras religiões, nos madraçais deste mundo ou com mediáticos Rinpoche, na mutilação genital de meninas, num sem-número de horrores que acontecem e têm de ser impedidos, prevenidos.
É por isso que o relatório da Comissão é uma peça fundamental, desde logo aceitando os erros que possa ter, por nos abrir o espírito à aceitação de que ninguém é perfeito, há vítimas e perpetradores, há justiça que terá de ser aplicada, há pessoas que sofrem e terão de ser tratadas, há prevenção que faltou e que não pode voltar a falhar. Por isso e para isso, mais do que inventar, clamar conhecimentos baseados no “acho que”, despejar fel sobre as Igrejas, a Católica Apostólica Romana em particular, interessa estudar, perceber as causas e mecanismos, tudo fazer para que os abusos não se voltem a repetir. Mas, já se percebeu, não será fácil.