FERNANDO LEAL DA COSTA

DECORO, RECATO E RESPEITO – Há pouco mais de um mês, uma secretária de Estado do Governo recentemente empossado pediu a demissão alegando motivos de saúde. Como a sua pasta era sensível e vivemos num mundo conspirativo onde a verdade nem sempre vende notícias, logo se engendraram teorias sobre os reais motivos para a desistência precoce de Sua Excelência. Teceram-se horas de comentários explicativos em que a doença teria de ter sido inventada. O primeiro-ministro, naturalmente irritado, confessou-se envergonhado do jornalismo nacional, o mesmo que os políticos usam despudoradamente quando lhes convém. Para mim, médico de profissão e habituado a que só ao próprio caiba a avaliação dos verdadeiros efeitos da doença de cada um, resta-me desejar as rápidas melhoras da senhora doente.

Serviu este exemplo para nos lembrarmos da devassa permanente a que a intimidade anda sujeita nos dias que correm. Todos achamos que temos direito a saber tudo sobre os outros, incluindo aquilo que não querem que saibamos. E todos, ou quase todos, somos de alguma forma culpados deste estado de coisas. Por um lado, mergulhámos nas redes “sociais” em que nos habituámos a ver de tudo e por tudo. Por outro, a mentira é quase regra na política e já nem na doença de um governante se pode acreditar.

Casos há em que a figura pública tem um significado tão grande que é melhor tranquilizar as hostes. Aqui podemos encontrar os cateterismos e hérnias do Senhor Presidente da República Portuguesa. Outros casos existem em que a doença, como a da próstata de Mitterrand, foi resguardada de olhos menos discretos e o decoro prevaleceu. Existem situações em que a “doença prolongada” foi nomeada, como se passou com Colin Powell. Note-se o temeroso eufemismo com que se fala de “doença prolongada”, para não dizer cancro, mesmo quando a morte sobrevem em poucos meses após o diagnóstico. Situações existiram em que uma governante com cancro da mama fez questão, entendo que mal, em divulgar a instituição privada em que era tratada. Noutros casos, porventura esquecidos, houve um ministro que saiu do cargo alegando dores nas costas. Chamaram-no de fraco, medroso, aproveitador de pretexto. Terá havido quem tenha perdido uma excelente ocasião para estar calado. Anos mais tarde, o mesmo ministro faleceu de mieloma, uma forma de cancro que destrói os ossos, começando pela coluna vertebral. Sim, a mesma doença que matou Colin Powell e que não é apanágio exclusivo de altas patentes militares ou de ministros de negócios estrangeiros. Houve também ilustres figuras das artes e letras, da política e até do jornalismo que didaticamente resolveram escrever sobre a sua doença. Quiseram fazê-lo.

Serviu-me o exemplo do primeiro parágrafo para refletir sobre os valores do decoro, recato e respeito. Decoro nos comentários que libertariamente há quem faça, recato a que todos temos direito e respeito a que todos estamos obrigados.

Existem situações em que o visado não tem como se esconder e é melhor falar, antes que outros falem por ele. Há quem queira contar. Os motivos serão diversos. Mas nada nos pode autorizar a querer saber sobre o estado de saúde de outros, se a isso não formos autorizados. Haja decoro, recato e respeito. Vão faltando e fazem falta.

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