O ARTIFICIAL DA INTILIGÊNCIA – Há poucos meses, a propósito do tema “tecnologias”, tive ocasião de participar num programa de TV em que se discutia a revolução digital na saúde e se caiu, inevitavelmente, a falar de inteligência artificial. Para celebrar o tema, bem à frente, houve um momento techno com uma intervenção via som e imagem de um colega meu que se encontrava numa universidade fora de Lisboa. O meu colega, que talvez não tivesse seguido as intervenções anteriores, foi confrontado com a minha futurologia, muito Sci-Fi, de que um dia, provavelmente distante, poderíamos ter androides, os dos filmes de ficção científica, a fazer de médicos. Curiosamente, a resposta do académico foi de recusa da ideia, baseando-se no “ainda” e mais “ainda” e “ainda” não é possível porque nada pode dispensar o toque humano.
Pois, a questão está no “ainda” e na impossibilidade de prever o futuro com os olhos do presente. O futuro não vai ser nada do que imaginamos e será ainda, isso sim, mais surpreendente. O passado e o presente são prova disso. Ora, a minha tese é de que a possibilidade, já atual, de termos sistemas de processamento de informação, lidando em velocidades vertiginosas com informação quase ilimitada, pode ajudar o raciocínio médico, diminuir a probabilidade de erro e libertar tempo para aquilo em que “ainda” os humanos médicos são insubstituíveis, no exercício da empatia e da compaixão. Mas nada nos autoriza a pensar que a mecânica cerebral que se traduz em alma não poderá ser um dia imitada e, porque não, aperfeiçoada em máquinas pensantes.
Mas o que mais me surpreendeu, voltando à terra, foi a ideia que o meu colega defendeu de que os alunos de Medicina de hoje não estão preparados para lidar com grandes quantidades de dados. Pois não, não estão. “Nenhum” humano, considerando a distribuição normal da população, consegue lidar com a magnitude de dados que cada momento gera em nosso redor, se formos para lá dos terabytes de informação de que precisamos para coisas tão simples como atravessar uma rua, conduzir um automóvel ou escrever esta opinião. Quantos bytes preciso para mexer os dedos no teclado? Mas do que estamos a falar é de uma infinidade de dados que estão em nosso redor e de que podemos não nos aperceber, nem ser capazes de relacionar. Dados que precisam de ser compilados, ordenados e arrumados para que as possíveis ligações entre eles possam ser descortinadas e daí resulte a transformação em informação útil. Dados que nos permitirão uma visão nova da clínica, da categorização a que chamamos diagnóstico e do cálculo de probabilidades a que chamamos prognóstico. Não, nós humanos, com um cérebro que ainda não é totalmente imitável por nenhum computador, não somos capazes de lidar com todo o potencial de informação que se pode criar. Por isso, antes da medicina de androides, já estamos a ter o despontar de computadores e supercomputadores que nos poderão ajudar a falhar menos, a julgar melhor e, acima de tudo a ter tempo para fazer o que ainda nenhuma máquina faz por nós, a cuidar de quem precisa. É mesmo porque não conseguimos lidar com quantidades gigantescas de dados que precisamos de computadores e daquilo a que insistimos chamar de “inteligência artificial”.
No fundo, quando falamos de inteligência artificial, de aparelhos “não biológicos” que fazem computação a grande velocidade e constroem os seus próprios algoritmos de solução, apenas estamos a aflorar o que de mais evidente existe e nos recusamos a ver. O artificial da inteligência é o que nos engana e distrai. Simplesmente, o que de mais artificial existe é o juízo que cada um faz do que o rodeia. Por isso, para que os factos sejam o que são e não o que gostaríamos que fossem, a inteligência, nem que seja artificial, faz muita falta.
Por: Fernando Leal da Costa – Médico do IPO e Professor da Escola Nacional de Saúde Pública