FERNANDO LEAL DA COSTA

pag 12_JCF_0098DECISÕES DIFÍCEIS

A eutanásia tem justamente merecido um conjunto de comentários recentes a que não posso deixar de me juntar. Não pelas responsabilidades públicas que já tive, mas porque trato doentes graves, muitas vezes terminais, desde há quase 30 anos. Independentemente das convicções filosóficas ou religiosas que devam e possam alimentar o debate, é fundamental que haja clareza nos termos precisos em que o tema tem de ser encarado e que não nos reduzamos a discutir se esta matéria é da Fé ou da Razão, se é para o Parlamento ou para referendo. O problema também deve ser visto na perspetiva da prática clínica, sem os subterfúgios da retórica religioso-determinística, da linguagem politicamente correta ou da juridicamente hermética. Este, como nenhum dos temas denominados de “fraturantes”, não é um tópico da esquerda. É, como em tudo o que à saúde diz respeito, um assunto de toda a sociedade que se pode colocar a qualquer um de nós. A eutanásia não é o suicídio assistido, situação em que a pessoa que deseja morrer executa, parcial ou completamente, com ajuda de outro, as medidas conducentes à sua morte. Na eutanásia há uma pessoa que mata outra, com o consentimento daquela que deseja morrer. Convencionou-se chamar eutanásia “ativa” a esta forma de matar uma pessoa que entendeu já não ter condições para continuar a suportar o sofrimento que a sua fisiologia lhe impõe. Trata-se de uma forma de homicídio premeditado e justificado, ainda que possa ser legitimado e legalizado tal como a pena capital. Por outro lado, porventura por desconhecimento do essencial da legis artis médica, alguns autores decidiram chamar eutanásia “passiva” à supressão de cuidados que possam prolongar a vida. A suspensão de tratamentos inúteis, por vezes indutores de sofrimento, é boa prática médica, ainda mais se acompanhada pelo reforço ou manutenção de medidas paliativas que possam contribuir para maior conforto do doente. Considerar que suspender medidas ineficazes ou sem utilidade para o bem-estar é eutanásia, mesmo que “passiva”, não é consentâneo com a essência da medicina. Coisa diferente é o abandono da assistência ou a recusa de prestar cuidados, matérias que os códigos deontológicos regulam e que podem ser legalmente punidas. Por oposição, a distanásia, termo pelo qual se designa a manutenção de intervenções que apenas prolongam a vida à custa de sofrimento, é má prática médica. Em Portugal, mesmo considerando a insuficiência de estruturas e modelos organizados para a prestação de cuidados paliativos, as regras que geralmente têm imperado são as do bom senso e da boa prática, princípios que a lei não pode garantir. Além do mais, já temos uma boa legislação sobre declaração antecipada de vontade no que à reanimação e aos cuidados em fim de vida diz respeito. As questões técnicas que sustentam uma decisão sobre a vida e morte, mesmo sem mais juízos ético-morais, têm uma dimensão que dificilmente as torna passíveis de serem reduzidas a articulado legal. Onde estará o limite entre um deprimido com determinação suicida e um outro doente que pede que o matem? Parece fácil? Não é! Será que um homicídio, ainda que justificado, poderá ser um ato médico? Há doentes, a quem tinham previsto menos do que um ano de vida, que agora revejo 20 anos depois. Quantos destes prefeririam ter morrido? Acima de tudo, conhecendo as dificuldades que ainda existem em Portugal, não nos devemos distrair da necessidade de melhores cuidados em vida, ainda que ministrados a quem parece que já só falta morrer.