Ópera e cultura
As supostas grandes diferenças entre esquerda e direita já não se centram na discussão do modelo económico ideal, coletivização da propriedade vs propriedade privada, intervenção exclusiva do Estado vs iniciativa empresarial. Nada disso. As maiores clivagens, meramente aparentes, estão ao nível do entendimento dos costumes e, até aí, a leitura que nos querem impingir está basicamente errada. A esquerda é mais conservadora do que a direita. Veja-se o exemplo dos tradicionais partidos comunistas. Os direitos dos homossexuais, a liberdade de escolher morrer, a liberalização das drogas ou o aborto são temas de cariz liberal muito mais próximos da discussão ética, muitas vezes religiosa, do que de uma visão da economia. Até se poderia argumentar que a esquerda, no seu fundamentalismo marxista, teria de estar sempre contra todas as argumentações que estivessem sustentadas em ideias de fé, mas a verdade é que quando nos lembramos do apoio que muitos esquerdistas dão às organizações que lutam pela defesa do mundo árabe, quase todas fundamentalmente religiosas e misóginas, percebemos como as ideologias já não são o que eram. De certa forma até houve muito mais uma adaptação das ideias aos tempos, da forma e do estilo dos seus defensores, do que uma evolução das ideias. A tradição já não é o que era. Um exemplo de como o conflito direita-esquerda está, nos dias de hoje, basicamente errado, prende-se com as touradas. Sem ser vegetariano, grande apreciador de um bom bife, não me convenço de que seja preciso maltratar o boi antes de o matar. Pessoalmente, entendo que as corridas de touros são um espetáculo triste e próprio de tempos em que era natural promover combates circenses, para gáudio dos povos civilizados, com a morte de milhares de animais e pessoas. Era assim a cultura. A mesma cultura e tradição que crucificava os condenados à morte, os que não eram cidadãos, e graças a essa prática cultural de tortura, requintadamente cruel, até ganhámos uma religião e uma simbologia. No entanto, a pena de morte é hoje condenada por uma larga maioria das pessoas e até já há seus defensores que pugnam por métodos rápidos e indolores, bem diferentes do ser repetidamente farpeado em face da assistência que pagou para assistir à tortura de um animal que, explicam os aficionados, foi criado para ser alvo de sevícias em público. Chegados aqui e não me parecendo possível que possa haver um paintball taurino, também não me parece evidente que seja de proibir todo o evento tauromáquico. Caso os nossos heróis estivessem incondicionalmente dispostos a exibir a sua presumida bravura em face de cornos montados em 400 kg de massa em movimento, poderiam sempre defender que os ditos cornos não fossem cortados, como é a cobarde prática nacional, e dispensassem o ritual de sangrar o animal antes de o entontecer com voltas de pano vermelho. Seria mais equilibrado. Não sendo possível, não se podendo dispensar a raiva do bovino, não havendo condições para defrontar o bicho com toda a sua hemoglobina, aceite-se a inevitabilidade do fim da “festa brava”, embora ao touro ninguém faça festas. Seja como for, não se argumente com cultura e tradição para defender uma manifestação cruel, mais uma das que urge eliminar, como ninguém poderá defender a mutilação genital feminina, as execuções na TV, o suttee, os autos de fé, os castrati – que Porpora, Broschi e Handel me perdoem – ou a crucificação, só porque foram ou são parte da cultura, da nossa cultura, da de toda a humanidade. Olhando para trás, para a história que nos fez, reconheçamos que tem havido progressos, para as pessoas e sociedades, ainda que de forma muito desigual. Mas não será pelas touradas que o mundo ficou melhor… exceto pela Carmen, que, reconheço, não seria a mesma coisa se o tema tivesse sido o atletismo. Olimpíadas é mais tema de Vangelis.