Mutilação é destruição
Em Portugal, entre janeiro de 2016 e o mesmo mês de 2017, registaram-se 80 casos de mutilação genital feminina. Uma vergonha! Oitenta mulheres foram sujeitas à destruição de parte da sua anatomia, em Portugal. Mas a existência destes dados é também um êxito e um tributo à plataforma de registo clínico informático que permitiu a sua captura. É a constatação do trabalho dos profissionais das instituições de saúde e da Direcção-Geral da Saúde, que muito têm feito para a avaliação epidemiológica e a prevenção deste flagelo cultural que continua a perseguir mulheres em todo o mundo. Perseguidas porque são femininas. Este número é também um reconhecimento ao esforço e vontade de Teresa Morais, que, enquanto membro dos XIX e XX Governos, se empenhou de forma decisiva no combate à mutilação genital feminina. Graças a ela e aos contatos que fui tendo com colegas da Direcção-Geral pude aperceber-me de uma realidade que não pode estar escondida. A partir do impulso dado pela secretária de Estado dos Assuntos Parlamentares e da Igualdade no XIX Governo Constitucional e, em 2015, ministra da Cultura, Igualdade e Cidadania do XX Governo Constitucional, tive ocasião de promover e acompanhar o trabalho de constituição e implementação da plataforma que agora nos deu estes dados. Oitenta casos não são poucos! Um, seria já demasiado para que o pudéssemos suportar. Seguramente serão mais do que estes. Os 80 são os que chegaram à plataforma de registo. Mas com estes 80 já figurámos em relatórios da UNICEF e, por isso, demonstrámos publicamente que, enquanto Estado e cidadãos, repudiamos esta prática funesta de mutilar meninas e jovens a quem o direito a uma vida plena, com prazer e amor, querem tirar. Em 2012, a propósito deste tema, escrevi que “não há estética que possa sustentar um ato que desfeia a natureza e descaracteriza parte significativa, talvez a mais significativa, do que confere às mulheres as suas características distintivas de género e que é um dos componentes da sua beleza, aquela parte de si que está mais ligada à procriação e à maternidade”. “O ciúme e a inveja mais patológica, a mesma que aceita mutilar meninas, imbuídas em sociedades que não se querem ou não se deixam modernizar, tratam-se com educação, com ensino, com a introdução dos valores básicos da democracia e do respeito por nós e pelos outros. Tudo isto é matéria de saúde.” “Os sexos não são iguais, têm de ser diferentes para fazerem sentido, mas temos de lhes garantir equidade. A equidade de género no acesso à saúde deve ser uma marca das sociedades democráticas modernas.” Mutilação genital é violência doméstica de um grau elevadíssimo. É violência promovida, apoiada, paga e realizada a mando das famílias das mutiladas. É um crime hediondo e que não tem justificação. Não lhe consigo encontrar atenuantes na “desculpa” de que é prática culturalmente estabelecida. A cultura não pode ser meio de propagação da ignorância. Ensine-se, motive-se, persuada-se, denuncie-se e puna-se, se disso for caso. Não se silencie, não se ignore. Mutilação genital é assédio sexual no extremo do que é assediar. É invadir o íntimo, é amputar a alma, é muito mais do que remover um clítoris, sem anestesia e sem assepsia, com uma faca suja, entre gritos e choros de crianças agarradas por mães e avós, de quem escorrerá sangue que no fim será o da marca da cicatriz que as perseguirá toda uma vida. É repugnante. Elimine-se a mutilação genital feminina. Extirpe-se, radicalmente, como a um tumor maligno.